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Que é isso, caminhoneiro?
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“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.” Amei a Revolta da Gasolina por aproximadamente trinta e seis horas. Nada menos. Amei, cri nas boas intenções, confiei nas juras. Foi eterno enquanto durou, mas durou pouco. Marcela de um lado, eu de outro. Caminhoneiros de um lado, eu de outro.

Num primeiro momento, não é difícil simpatizar com a causa. Os tributos são altíssimos, a sensação de anomia é forte demais para ser ignorada, as derrapagens na política econômica dos últimos anos desnorteiam o trabalhador. Parece que nada acontece e nada vai a lugar nenhum.

A história, é bom não esquecer, vem de mais longe. Não deixa de ser irônico que o despedaçado governo Temer, com todos os defeitos que tem, esteja apanhando por tentar arrumar a bagunça do governo Dilma.

Então os caminhoneiros resolveram parar. E parar o país. Um dia, dois dias, três… quatro… sete dias. Mercados e feiras sem abastecimento e a comida apodrecendo. Hospitais e aeroportos, necrotérios e canis. Os caminhoneiros sentaram na boleia do país e lá resolveram ficar. Houve negociação num dia, frustrada no dia seguinte.

Das primeiras exigências passaram às segundas, às terceiras, and counting. Reclama-se do preço do combustível, do voto impresso, do pedágio, do Michel Temer, do sumiço da Sula Miranda, da intervenção militar. Sim: caminhoneiros pedem intervenção militar enquanto militares tentam manter a ordem pública. O Brasil é um objeto impossível.

O resultado disso tudo, que começa como reivindicação (legítima) e termina como chantagem (ilegítima), não será reforma tributária,  cinquenta anos em cinco, queda da Bastilha: será, tão somente, a acovardada concessão de subsídios e a promessa de congelamento de preços e ainda mais regulação para determinada classe. Caminhoneiros comemoram? Pois seus patrões comemoram ainda mais.

E a conta vai chegar para alguém. Não existe almoço grátis. Não existe combustível grátis.

Se um improvável caminhoneiro me pedisse opinião, eu não daria minha opinião – eu a trocaria por cinco galões de gasolina. Ainda assim, se insistisse, eu diria o seguinte: greves são legítimas e eles são uma classe de fato poderosa. Que a paralisação durasse vinte e quatro, trinta e seis horas, como um forte recado ao governo: “Senta aqui, governo, precisamos conversar.” O governo muito provavelmente teria percebido que seria melhor conversar.

Se o governo ignorasse e não houvesse conversas, em alguns dias, outra paralisação: vinte e quatro, trinta e seis horas. Isso é tempo suficiente para começarem os problemas e a categoria mostrar a força que tem; por outro lado, não é tempo demais que prejudique o resto da população, que sofre tanto quanto os caminhoneiros.

E quanto à pauta? Que não fosse circunscrita a interesses restritos, nem a sentimentos indeterminados ou grupais. Que pensasse em longo prazo. Que propusesse reforma tributária profunda e corte de gastos governamentais, como sugere Eduardo Giannetti. Que exigisse a privatização da Petrobras e a abertura do mercado. Que sugerisse a diversificação logística do transporte de carga no país. Estas, sim, mudanças estruturais profundas e imprescindíveis. De quebra, em curto prazo, algum corte tributário seria aceitável como forma de barganha.

Mas não, nada disso se pede. Pede-se mágica. Pede-se o que Sarney, ele mesmo, fez com gosto: congelamento de preços, controle, intervenção, subsídios, proteção. Pede-se tudo o que uma criança pede ao papai: doces, balas, sorvetes antes da comida. Porque infelizmente, ainda que a política econômica de governos desastrosos seja ilógica, a economia, em sentido estrito, é cruelmente lógica. Basta abrir o livro-texto do primeiro ano.

O movimento se metamorfoseou e, pouco a pouco, perdeu legitimidade moral. Para chantagear o governo, chantageia-se o país governado por ele, como um sequestrador que ameaçasse o refém para conseguir resgate. Esse sentimento mais ou menos difuso de revolta, de insatisfação, que todos sentimos, tem de se consolidar em voto decente, em protestos e negociações consistentes e duras, porém civilizadas. Não sendo assim, tudo termina nos 20 centavos de alguns anos atrás.

De repente, o caminhoneiro virou símbolo de quê? Derruba-se o governo, subleva-se o governo popular? “Todo poder aos sovietes!” Deu no que deu, porque o poder sempre será preenchido: por caminhoneiros e seus patrões, por fascistas de esquerda e de direita, por eleitores de Boulos e de Bolsonaro.

Ser contra tudo não quer dizer nada. Dizer que alguma coisa tem de ser feita é aceitar que qualquer coisa seja feita, boa ou ruim. Creio em poucas coisas na vida, mas de uma tenho certeza: é mais fácil acreditar na Transubstanciação que nos poderes demiúrgicos desse desconhecido – o povo. Já não tenho mais quinze anos de idade, meus hormônios deram lugar aos meus neurônios, sinto muito por isso.

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