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Sigmund Freud
Sigmund Freud| Foto:

A espontaneidade é uma característica supervalorizada. Admito que meu cachorro – Francis, Paulo Francis – seja espontâneo a seu modo, e mesmo assim ele tem bons modos, mas entre humanos adultos isso costuma dar problema.

Já notaram que gente mal-educada, apressada e teatral gosta de gritar sinceridades? No restaurante, no embarque do avião, na fila do banco, no almoço de família. Comportar-se como selvagem faz sucesso entre jesuítas.

Gente mal-educada despeja na audiência as suas verdades – que não são, nem sempre são, verdades.

Muitas vezes são apenas umas secreções intelectuais, morais ou sabe-se lá quais. Quase sempre quem fala na cara só fala bobagens. Eu até aceito que me falem na cara, fiquem à vontade, mas que seja qualquer coisa mais inteligente do que eu mesmo falaria.

Sinceridade à beça eu só admito em quem tem alguma coisa relevante a dizer, caso contrário seria como, vejamos, não tomar banho nem dar conta das higienes e se orgulhar disso: “Meu cheiro é autêntico!” Prefiro cheiros inautênticos, se isso aí for cheiro autêntico.

A cultura veio corrigir os excessos – os cheiros, os pensamentos, as más decisões – da natureza.

Civilizações inteiras podem ser resumidas numa palavra: arte. Arte no sentido mais genérico de técnica, conjunto de preceitos, preparo, apuro, esquadrinhamento, pose. Arte no que tem de artificial mesmo. Em vez do cru, o cozido.

Existe uma arte de viver, sabiam os antigos. Gregos e romanos não desprezavam essa hipótese da filosofia como modo de vida. A propósito, tomo conhecimento dum interesse renovado no estoicismo. Embora saiba o quanto de passageiro e midiático haverá nisso, comemoro o elã.

Morrer é mais espontâneo do que viver. Viver dá trabalho, exige cuidados, rigores, exercícios, restrições, ciência, superstição, remédios, canja de galinha. Morrer é fácil. Para morrer fisicamente – e também espiritualmente – basta se deixar levar. Deixa a vida te levar que ela te leva direitinho para o túmulo.

Um restante dessa sabedoria sobrevive ainda, com muito custo, nas religiões: a ideia de que a vida não deve ser vivida sem algum engenho espiritual, sem o impulso ao aprimoramento, sem o hábito de lavar as mãos antes de sair do banheiro e depois das votações.

A política também consiste nisso, no que tem (tem?) de nobre. Tão importante quanto falar na praça é saber falar e ter o que dizer na praça. A pólis precisa de cidadãos, não de símios, e isso nada tem que ver com títulos acadêmicos ou poderes econômicos. São méritos que se conquistam com esforço deliberado, caráter educado e umas regras de etiqueta.

Quem se perde no tumulto das paixões e na algazarra dos sentimentos não merece ser ouvido com muita atenção. Sinceridades gritadas de cima da laje mental, verdades berradas do puxadinho mal rebocado do espírito, desabafos proferidos por quem esquece os cotovelos fincados à mesa da cultura não interessam nadinha a ninguém.

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