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Foto: Matt Campbel/ ONU
Foto: Matt Campbel/ ONU| Foto:

por Igor Sabino

Talvez o longa metragem da Netflix, Sérgio, estrelado por Wagner Moura e lançado na última sexta-feira (16), não faça jus à vida e aos feitos de Sérgio Vieira de Mello. Para muitos críticos, o filme falha ao tentar misturar romance com thriller político, não conseguindo realizar com maestria nenhuma coisa nem outra. Apesar disso, cumpre um papel importantíssimo: apresentar aos brasileiros um dos nomes mais importantes da nossa história recente, e trazer à tona alguns dos principais desafios da sociedade internacional contemporânea, no que diz respeito ao papel das instituições e à atuação das grandes potências.

Enquanto jovem internacionalista, sempre tive Sérgio Vieira de Mello como um referencial. Durante minha graduação e mestrado em Relações Internacionais, participei de forma ativa da cátedra que leva o seu nome, e dediquei-me a pesquisar sobre as consequências da invasão estadunidense na vida dos cristãos e outras minorias religiosas do Iraque. Para isso, além de me inteirar sobre as discussões envolvendo governança global, recorri extensamente à obra de Gil Loscher, o amigo de Sérgio que, conforme relatado no filme, também foi vítima do atentado terrorista que ceifou a vida do brasileiro, sendo resgatado dos escombros pouco tempo antes de sua morte.

Desse modo, impossível seria assistir a Sérgio e não refletir sobre os muitos problemas da ordem internacional contemporânea, sobretudo em tempos de COVID-19. Vieira de Mello, embora justamente chamado de diplomata, não trabalhava representando os interesses do Brasil e sim da ONU, organização na qual iniciou sua carreira em 1969, no Alto Comissariado das Nações Unidas (ACNUR). Durante mais de três décadas, ele participou de missões humanitárias ao redor do mundo, em países como Líbano, Chipre, Sudão e Timor Leste. Além disso, ocupou diversos cargos importantes dentro da burocracia onusiana, como Alto Comissário para Direitos Humanos e Secretário-Geral-Adjunto para Assuntos Humanitários. Devido à sua competência e à sua integridade, era cotado para se tornar o Secretário Geral da ONU, até ser morto brutalmente em Bagdá, em um atentado cuja autoria foi reivindicada pelo jordaniano Abu Musad al-Zarqawi, precursor daquilo que hoje conhecemos como Estado Islâmico.

Sérgio era um humanitarista e acreditava que a sociedade internacional do século XXI deveria ser marcada pelo respeito à autodeterminação dos povos, pela manutenção das independências nacionais, pelo refreamento das grandes potências e pela atuação mediadora de instituições como a ONU. Utilizando os termos de Hedley Bull, uma “sociedade anárquica”, mas com regras e normas internacionais a serem observadas, sendo a soberania nacional a primeira delas. Essa ordem internacional, contudo, parece estar em declínio. Seu desgaste, ouso dizer, assim como a morte de Sérgio, teve início em 2003, com a invasão do Iraque.

Ao intervir militarmente no país árabe, com provas falsas de que Saddam Hussein dispunha de armas de destruição e mantinha relações com a Al-Qaeda, os EUA cometeram talvez um de seus maiores erros recentes de política externa. Na esteira da chamada “Guerra ao Terror”, após os atentados do 11 de Setembro, os americanos queriam deixar claro para o mundo que a ordem liberal e seus valores estava ameaçada e que a ONU já não era mais capaz de cumprir as funções que lhe haviam sido atribuídas após o fim da Segunda Guerra Mundial. Logo, não hesitaram em ignorar as recomendações do Conselho de Segurança que proibiam a invasão do Iraque. Dessa maneira, assumiam para si mesmos o papel de potência hegemônica. Tudo isso em nome da promoção da democracia e dos valores liberais.

Não demorou muito, porém, para que eles se dessem conta de que o custo dessa empreitada seria bem mais alto do que o esperado. Após a deposição de Saddam Hussein, o Iraque mergulhou em caos, com uma guerra civil que, além de gerar grandes baixas para os EUA, forçou o deslocamento de milhares de civis iraquianos. O ápice das tensões étnico-sectárias no país, entretanto, seria em 2014, três anos após a retirada das tropas estadunidenses e do início da chamada “Primavera Árabe”. A Guerra na Síria, somada à postura isolacionista adotada pela Administração Obama, prepararam o caminho para a ressurgência do Estado Islâmico, criado ainda em 2006, em resistência à ocupação americana. Dez anos de engajamento no Oriente Médio, com poucos ganhos estratégicos, levaram os EUA a repensar sua postura não apenas na região, mas no cenário internacional como um todo. Em cerca de uma década, passaram de “polícia do mundo” a um “império em retração”, posicionamento defendido tanto por democratas como por republicanos, iniciado por Obama e continuado por Trump.

A ONU, por sua vez, luta cada dia mais para restaurar sua credibilidade. Devido à incapacidade de evitar a invasão do Iraque, a organização passou a ter cada vez menos peso na resolução de conflitos, assumindo um caráter muito mais humanitário e social e tentando remediar as consequências humanas das mudanças climáticas e das crises internacionais de deslocamento forçado. Seus fóruns multilaterais, por outro lado, sobretudo a Assembleia Geral, tornaram-se plataformas ideais para que governos autocráticos e potências não-ocidentais buscassem aumentar sua influência e captar a atenção da opinião pública mundial. Um exemplo disso é o número desproporcional de resoluções condenatórias aprovadas contra Israel em comparação a países conhecidos por flagrantes violações de direitos humanos, como Venezuela, Rússia, Síria e Irã.

O mesmo tem acontecido com outros órgãos. A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, tem sido alvo de escrutínio público, devido às denúncias de favorecer a China ao ocultar dados sobre a gravidade do novo coronavírus, demorando a considerar a doença como uma pandemia e, pior, ao divulgar informações imprecisas sobre o uso de máscaras. Em resposta, os EUA, um dos maiores financiadores da organização, anunciaram a suspensão da doação de fundos.

Vivemos, portanto, em um cenário marcado por instituições internacionais com legitimidade decrescente e potências relutantes em assumir responsabilidades. Diante disso tudo, o Brasil parece entender cada vez menos qual é o seu papel no cenário internacional, adotando uma política externa sem objetivos concretos claros e dependente de uma liderança estadunidense que inexiste na Administração Trump. E é por isso que precisamos de Sérgio Vieira de Mello. Sua trajetória nos ajuda não apenas a entender as transformações que temos vivendo, mas também nos aponta para a solução.

Uma das características da Escola Inglesa de Relações Internacionais – da qual me considero adepto – é a normatividade, ou seja, a tentativa de entender o mundo como ele é e, a partir disso, oferecer sugestões viáveis de como ele deveria ser. Isso é algo que percebo sempre que penso no legado deixado por Sérgio. Acredito que agora, mais do que nunca, precisamos restaurar os elementos da chamada “sociedade anárquica” de Bull, sobretudo o equilíbrio de poder.

De acordo com o pensador inglês, o equilíbrio de poder serve para evitar a transformação da sociedade internacional em um império universal. Ademais, contribui para a manutenção da independência de países pequenos e gera as condições necessárias para o funcionamento de outras instituições importantes para a ordem internacional, como a diplomacia, a guerra, o direito internacional e as relações entre as grandes potências. Foi a ausência desse elemento que possibilitou a invasão do Iraque e, atualmente, tem permitido a irresponsabilidade chinesa ao lidar com as consequências do COVID-19. Para que isso ocorra, as grandes potências precisam não apenas reconhecer o seu status como tal, mas estarem dispostas a arcar com as consequências dessa condição.

Se em 2003 a sociedade internacional esteve sob risco devido ao excesso de “liderança” dos EUA, em 2020 o risco permanece por sua falta. Para que haja ordem entre as nações, nenhuma delas pode ter aspirações imperialistas, e a forma de evitar isso não é por meio de instituições, mas do contrabalanceamento de poder. Da mesma maneira que anos atrás os EUA deveriam ter sido “parados” e responsabilizados, agora é preciso parar e responsabilizar a China. Isso, porém, acontecerá apenas por meio do poder e, paradoxalmente, do compromisso estadunidense não apenas com os seus próprios interesses, mas também com a ordem internacional como um todo. Só então será possível pensar outra vez no papel e na legitimidade da ONU e demais regimes internacionais.

Não sei se o Sérgio Vieira de Mello concordaria comigo. Talvez me considerasse “realista” demais, em termos de política internacional. Mas, diante de sua ausência, creio que cabe a nós tentar interpretar sua vida à luz dos nossos dilemas e assim buscar honrar suas conquistas na luta pela paz e estabilidade internacional.

Igor Sabino é Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e alumnus do Philos Project Leadership Institute. Realizou trabalhos humanitários em ONGs de Direitos Humanos ligadas à American University of Cairo, no Egito, e pesquisas de campo na Polônia, Israel, Territórios Palestinos, Líbano e Jordânia relacionadas a migrações forçadas e perseguição religiosa.

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