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Alessandra Negrini no carnaval paulistano
Alessandra Negrini no carnaval paulistano| Foto:

Com a sazonalidade já conhecida, um evento junta direita e esquerda, católicos e protestantes, carnívoros e vegetarianos, guelfos e gibelinos, Montecchios e Capuletos, palmeirenses e corintianos, apocalípticos e integrados, todos numa comunhão plena de entendimento, numa mesma fé, muito acima de qualquer discórdia possível: Alessandra Negrini, de beleza interminável, a desfilar num bloco paulistano.

O carnaval é o pretexto desimportante para o único desfile que importa. Nesta temporada a aparição foi mais sagrada que de costume: vestiu-se de índia para representar os índios e isso, caríssimos, é uma grande questão de nosso tempo.

Porque, em tese, a se acreditar em certos dogmas irrevogáveis desde anteontem, não se pode, não se deve, não é de bom-tom fantasiar-se de índio no carnaval. Nem de negro. Nem de mulher. Nem de gay. Nem de alto. Nem de baixo. Nem de psicanalista.

Nem de qualquer coisa que não seja figura mitológica e de mitologia distante. De preferência, posto que nunca se sabe quão suscetível há de ser a mitologia alheia, fantasie-se o folião de qualquer entidade que se saiba, sem margem para dúvida, inexistente. Por exemplo, liberais brasileiros e socialistas democráticos.

Mas quem terá coragem de discordar da Alessandra Negrini a desfilar de índia no carnaval? Heresia tem limite, meus senhores. Ajustemos, pois, a doutrina aos costumes, a teoria aos fatos, e reconheçamos santidade em quem é santo. Ela se fez de índia e soube convencer reacionários, que até se dispuseram a respeitar um bocadinho os índios, e logrou apaziguar progressistas, que não sabem direito a que objetar desta vez.

O carnaval viu-se enredado, de repente, numa aporia estético-ideológica inédita, dessas de alarmar autoridades e comover líderes da sociedade civil, de chamar a atenção de Greta Thunberg e estimular a indignação de Roger Waters.

Até que um índio descido de uma estrela colorida e brilhante, impávido que nem Muhammad Ali, veio para desfazer, numa só flechada, retifico, numa singela declaração, a salomônica dúvida: homem branco pode sim brincar de índio, justamente porque índio também pode brincar de homem branco.

Noutras palavras, não existe apropriação cultural; existe cultura. E cultura é isso mesmo: apropriação e expropriação; imitação e empréstimo; inspiração e pastiche; roubo e doação.

Não é por mal quem está fazendo. Quem está fazendo, faz porque quer se enfeitar, adquirindo nossas vestimentas, nosso cocar, nossas coisas. Nós usamos objetos de vocês também, então é uma troca”, ensinou o cacique Raoni, da etnia caiapó, indicado ao Nobel da paz e, presumo, um tanto mais índio que muito aluno de ciências sociais da USP.

Quem sou eu para contra-argumentar? Desse pecado não precisarei pedir perdão. Os corretos fiquem com suas teses de apropriação cultural e lugar de fala. Eu fico com a fala e a cultura do cacique Raoni. E, muito naturalmente, com a fantasia e as fantasias da Alessandra Negrini.

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