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Bruna Marquezine surge macérrima no carnaval. Miro a jovem figura e tenho ganas de lhe arranjar um frango de padaria, umas batatas assadas e um pote de sorvete. Come chocolates, pequena, come chocolates! Enche esse bucho, por amor a Deus, porque ninguém devia passar fome para ser bonito.

Que inocência, a minha. É o que ela quer, eu estou por fora. Temos aí o conceito de “body positivity”, que significa aceitar o que se é e mandar às favas os padrões de beleza. Mandar às favas até a própria beleza, se calhar. Por mim tudo bem. Sejamos magros e muito magros, gordos e muito gordos, felizes e infelizes. A vida seguirá sem maiores contratempos até que voltemos ao pó.

O problema é que a Bruna Marquezine é conhecida o bastante para chamar a atenção da audiência. Salvo engano é exatamente desse modo, por esse prosaico motivo, que ganha a vida: chamando a atenção da audiência. Em novelas, em revistas, em carnavais. Não sei de suas outras realizações científicas e literárias.

Bastou sua imagem surgir, etérea e angulosa como a dos faquires indianos, para que o humorista Danilo Gentili fizesse o que costumam fazer os humoristas: humor. Se bom, se ruim, julgue quem julgar, ria quem rir.

Ele viu a foto e legendou: “Parece que ela trocou um craque pelo outro”. O trocadilho é óbvio para quem andou espiando a vida das celebridades nos últimos anos. Eu ri. Tem graça. Em seguida, mudei de assunto e voltei o espírito para coisas mais transcendentes, como os gols da rodada e a classificação do meu time.

Qual não foi minha surpresa ao descobrir, horas mais tarde, que a piada virara insulto e o insulto se transformara em crime contra a humanidade ou coisa pior. Testemunhas do credo politicamente correto se dispuseram a denunciar, com o fanatismo de costume, o mau gosto da zombaria. Para eles, para elas, ninguém têm o direito de fazer troça da imagem alheia. Não se brinca com coisa séria. Não se chuta imagem de santa.

A verdade é que nunca foi tão claro, jamais foi tão transparente, o impulso à censura e ao controle da linguagem. Nos tempos em que todos podem falar a respeito de tudo, nem todos podem falar a respeito de tudo. Há uma espécie de zoneamento do lugar de fala. Sua fala depende da matrícula, da autorização, da consanguinidade ideológica.

Estes podem falar, outros não podem. Algumas coisas podem ser ditas, outras nunca. Estes valores são sagrados, aqueles não. Fazer graça com a imagem de Maria de Nazaré pode. Fazer graça com a imagem de Bruna Marquezine não pode. A religião mudou um bocadinho, tivemos atualizações importantes, mas o sentido do sagrado parece ser o mesmo.

A discussão sobre os limites do humor (e da expressão mais geral) passa por saber quem faz, com quem se faz, contra quem se faz, a favor de quem se faz. Pois a depender dos remetentes e dos destinatários, dos autores e das vítimas, dos dogmas e das heresias, pode ou não pode. Existem piadas e ofensas do bem, piadas e ofensas do mal.

É uma ideia descabida e, no limite, inviável. As pessoas públicas aparecem, desaparecem, reaparecem; vestem-se, despem-se, engordam, emagrecem. Dão declarações, negam declarações. Contratam os paparazzi, processam os paparazzi. No cinema, na televisão, na moda, em qualquer lugar a imagem de quem quer que seja é em parte dela, em parte nossa.

Não há como fazer o controle de qualidade das reações do distinto público. Eu, por exemplo, escrevo. Uns gostam, outros não gostam, muitos reagem. E têm direito de reagir. Meu texto é meu, mas as reações a ele não são minhas.

Quem não quer estar sujeito a piada, comentário, crítica, julgamento e, alto lá!, elogio, que arrume atividade mais discreta. Digo isso sem ironia. Existem profissões, e são muitas, que nos dão o prêmio do anonimato. A vida assim é boa, mas não gera dividendos nem monetiza. O que não faz sentido é escandalizar-se com o julgamento público, quando o próprio sucesso depende também do julgamento público.

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