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Homem Vitruviano, Leonardo Da Vinci
Homem Vitruviano, Leonardo Da Vinci| Foto:

Eli Vieira é formado em Ciências Biológicas pela Universidade de Brasília (2009) e mestre em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012). Concluiu um segundo mestrado na Universidade de Cambridge (Reino Unido). Estuda Evolução Molecular e Genética Quantitativa.  Divulgador científico, prepara seu primeiro livro.

1 Eu gosto de biografias (intelectuais, principalmente). Me fale um pouco da sua, por favor: estudos, trabalho, publicações. E o que temos para breve?

Talvez ainda seja cedo para biografia. Mas, como me aproximo perigosamente da idade de Cristo, vamos resumir assim: quis entrar na pesquisa em biologia evolutiva quando calouro na UnB. Consegui entrar no Laboratório de Biologia Evolutiva por lá no terceiro semestre. Fiz três iniciações científicas. Depois fui para Porto Alegre, para o Laboratório de Evolução Humana e Molecular, estudar a história evolutiva de genes “acusados” de participação em transtornos psiquiátricos. Na verdade, ajudei a fazer uma ponte entre esse laboratório e outro dedicado à genética psiquiátrica. Citei Chuang Tzu na minha dissertação de mestrado da UFRGS, aquele mestre chinês do Raul que sonhou que era uma borboleta. É que ele tem também uma história milenar de um debate em que ele discutia com um amigo/rival intelectual sobre se podemos saber como os peixes se sentem. Aproveitei a história para dizer que agora, com a genética e a evolução, podemos ter uma boa ideia disso. Essa mania de florear texto científico acabou me rendendo uma pequena bronca do meu orientador em Cambridge, Inglaterra, onde fui para fazer doutorado, mas de onde eu vim com um segundo mestrado. Eu digo que foi por opção, pois elogiaram a minha tese para o PhD e me ofereceram mais tempo para entregar mais volume, que era o que queriam. Nunca fui a criança que espera para ganhar o doce; a segunda opção era aceitar o segundo mestrado ali mesmo, e foi o que eu fiz. Teve gente que sabe como se deu essa história em mais detalhe que, depois, por revolta com o meu liberalismo lacônico, passou a usá-la contra mim. Tudo bem. Já tenho minhas citações. Agora, posso voltar com meus floreios nos meus textos, e, como diz o Antonio Risério, lançar meus torpedos do conforto do meu emprego como coordenador de escola de línguas. Tenho minhas ambições, tenho amor na vida privada, e uma ótima família. A vida é boa.

O que eu estou escrevendo agora, lentamente, é um livro sobre as várias facetas mal compreendidas da natureza humana, especialmente no contexto atual de besteirol identitário, exibicionismo moral e desenfatização de evidências inconvenientes.

2 Você deve sua fama repentina a uma controvérsia com o Silas Malafaia, o que não é currículo que se apresente. Justifique-se ou cale-se para sempre.

Ah, pois é. Que posso dizer? Foi assim: em 2011, perguntaram-me na web sobre a genética da homossexualidade. Eu, no primeiro mestrado, vergonhosamente nunca tinha parado para pensar e estudar o assunto, mesmo sendo viado e na época já fora do famigerado armário. Pois debrucei-me sobre o assunto, e respondi ao anônimo que me perguntou (no Tumblr, na época). Dois anos depois o Malafaia foi entrevistado pela Marília Gabriela no SBT, no começo de 2013. Disse que ser do babado não tem nada de genética. Minha irmã Diana disse que eu era a pessoa certa para responder, por ser da genética e por ser do babado, além de gostar de falar dessas coisas em público. Malafaia desovou na cabeça da Gabi (visivelmente exasperada) uma estatística: 43% dos gays são gays porque sofreram abuso sexual na infância, e o resto escolhe ser. Eu achei de onde ele tirou essa estatística: não era nada disso. Essa dicotomia de “foi abusado/escolheu” ele próprio inventou, a propósito. Achei até a fonte de segunda mão que o Malafaia usou e, espertamente, traduziu para o português com editora própria. É um livro de um biólogo de Cingapura muito fundamentalista que defende também a cura gay. Enfim, peguei aquele texto de 2011, atualizei com fontes mais recentes, e publiquei como vídeo. Era 1h da manhã quando saí do Departamento de Genética de Cambridge, empolgado, após publicar o vídeo. Quando acordei no outro dia, já tinha explodido. Amigos ouviam estranhos falando de mim em mesa de bar. Minha orelha ficou quentíssima. Recebi uns 60 mil comentários em poucos dias. Milhares eram, claro, mal-educados, para dizer o mínimo. Jamais deletei um só comentário negativo naquele vídeo. Ao contrário do que alguns podem ter lido em manchetes recentes de jornalistas descuidados, de 2013 para cá o que eu defendi foi reforçado: vários genes participam da orientação sexual em geral e da homossexualidade em particular. Sabemos até onde no genoma: cromossomo X e cromossomo 8 estão envolvidos, por exemplo. A parte do ambiente é mais ou menos responsável pela metade da variação, porém, “ambiente” aqui inclui biologia (ambiente uterino por exemplo), e ninguém demonstrou que abuso de pedófilos ou “escolha” sejam fatores causais importantes da homossexualidade. Se o título de psicólogo do Malafaia vale alguma coisa, se permite a ele ter alguma noção de justificação por evidências, ele sabe que foi derrotado. Não por mim, mas pela literatura científica, a que ele tentou citar, mas queimou a língua.

3 Certas perguntas são até engraçadas de se fazer, mas O tempora!, O mores!, vamos lá: você “acredita” em papai e mamãe, homem e mulher, macho e fêmea, ou isso tudo é invenção do capitalismo, da Igreja Católica, do Donald Trump?

Busco não ter crenças que eu chame de místicas, ou religiosas, ou numinosas. Mas posso dizer que eu sinto um frio na barriga quando penso no quão fascinantes, profundamente misteriosos e longevos são os sexos. A diferença entre macho e fêmea não apareceu uma vez só nos 4 bilhões de anos de história da vida. E, na biologia, se uma coisa aparece várias vezes, é porque tem algo de fundamental, tão fundamental que poderia ser extrapolado para possíveis formas de vida de outros rincões do universo que sequer conhecemos. Olhos, por exemplo, apareceram dezenas de vezes por aqui, pois, no contexto da sobrevivência neste planeta, a luz é relevante. Não sabemos o que são as coisas relevantes que fazem do sexo fundamental, os melhores biólogos já propuseram até que são os parasitas. A reprodução assexuada é mais barata e eficiente, mas a mãe natureza parece preferir o fazer-amor. Talvez seja porque o sexo gera mais diversidade genética que a partenogênese, o que é uma aposta melhor para um futuro incerto. Enfim: o sexo que tem o gameta maior e mais caro (pensemos em ovos) será também o sexo que tenderá a evoluir com uma propensão agregada de se preocupar mais com cuidado do que o sexo que produz uma infinidade de minúsculos gametas descartáveis (pensemos em pólen). Para um biólogo, portanto, não é surpresa que as mulheres, quando realmente podem escolher, quando vivem com liberdade, tenderão a preferir profissões de cuidado. Eu disse isso no Twitter, e uma resposta ignorantona, de uma pobre coitada que sofre de possessão ideológica e infecção cerebral por ideias de segunda mão, recebeu 4 mil curtidas. Ela igualou o dimorfismo sexual à eugenia, bicho-papão preferido dos deterministas culturais biófobos. Os defensores da diversidade não gostam de um fato biológico que gera diversidade. Sua ideia principal é uma confusão estúpida entre o que é e o que deve ser. Não sabem que o efeito da liberdade é a diferença e não a mesmice. Assim como a felicidade do peixe é estar na água, a felicidade de muitos homens está em correr riscos por esporte e no interesse obsessivo por certos objetos, e a de muitas mulheres está em cuidar de alguém e resolver problemas pela palavra. Que há exceções nunca foi novidade, e devemos também ao liberalismo que as exceções tenham liberdade de correr atrás de suas preferências antiestereotípicas. Mas os que são ideologicamente antiestereótipos não entendem que, apesar disso, estereótipos são geralmente precisos. A verdade é politicamente incorreta.

4 Existe mesmo esse problemão todo (existe como problema real, substantivo) que chamam de “teoria de gênero”? Como é que você vê todo esse imbróglio pós-moderno que mistura ou afasta sexo, gênero, identidade, personalidade, linguagem e longo etc?

Eu encontrei o uso do termo “gênero” no sentido de sexo num documento em língua portuguesa do século XVI. Mas não é a mesma coisa que hoje. Era só uma palavra alternativa para “tipo”, e os dois tipos mais instantaneamente reconhecíveis de pessoas são os sexos. Eu sigo a ideia da filósofa Helena Cronin: a palavra “gênero” passou a ser adotada na intelectualidade ocidental desde os anos 1950 numa distinção radical entre ambiente (cultural) e biologia que nós não conseguimos fazer na realidade, pois esses dois grandes conjuntos de causas são interlaçados demais. Nós não fazemos isso com muitos outros atributos humanos que têm parte ambiental e biológica. Nós não diferenciamos altura de estatura, alegando que a altura é uma coisa separada da estatura, que a altura é biológica enquanto a estatura é totalmente ambiental. Não seria um uso útil das palavras, não seria condutivo ao entendimento. É o mesmo com a distinção entre gênero e sexo, que é uma distinção sem diferença. Os brasileiros se tornaram mais altos nas últimas gerações por razões predominantemente ambientais: passamos a não ter deficiências nutricionais. Enquanto isso, está provado que os homens escandinavos se tornaram cada vez mais altos, ao mesmo tempo, porque seus genes foram selecionados pelas mulheres dessa forma, e não foi nenhum programa estatal de eugenia, mas puro e simples interesse sexual. O puro e simples interesse de um sexo pelo outro vai bem além da altura. Agindo na profundeza do tempo gerou diferenças agregadas que estão no cérebro e no comportamento, as partes que farsantes como Judith Butler querem monopolizar para a seara da cultura.

Ninguém nega que há exceções de altura: mulheres mais altas que a média dos homens, e homens mais baixos que a média das mulheres. Mas estamos prestes a sermos acusados de algum “ismo” abominável se dissermos que a média de estatura das mulheres é mais baixa que a dos homens e que a biologia tem muito a ver com isso. Se a evolução das diferenças entre sexos trabalhou no comprimento e densidade dos ossos, não há motivo para pensar que parou de trabalhar dentro do crânio. Ser homem ou ser mulher é uma coisa tão orgânica quanto ter um braço. Sim, as tatuagens nos braços são marcas culturais. Mas são superficiais.

Um dos principais responsáveis pela popularização do termo “gênero” como substituto determinista cultural para “sexo” foi John Money. Um cientista criminoso, que aconselhou criar um menino que perdeu o pênis como menina, o que acabou em tragédia. O menino, David Reimer, deve ter sido o primeiro caso de alguém que sofria de disforia por querer se identificar com o sexo com o qual nasceu. Teve vários problemas, chegou à vida adulta, mas a “terapia” determinista cultural do “gênero” de Money contribuiu para o derradeiro suicídio de Reimer. Também há denúncias de que o Dr. Money punha o pequeno David para simular atos sexuais com a irmã gêmea em seu consultório. Para mim, John Money foi um Mengele da Tábula Rasa. E a razão de poucas pessoas saberem dos crimes cometidos em nome de moldar pessoas à imagem e semelhança de ideias utópicas radicais, como a ideia de que “gênero é construção social” (que chega a ser tautologia pelo uso da palavra “gênero” hoje), é simplesmente que a academia e as pessoas que dizem que querem ensinar ciência para o público estão em grande parte casadas com a tribo política que é obcecada por esse tipo de utopia.

Sobre o policiamento autoritário da língua em nome da “igualdade de gênero”, sempre me lembro da relação entre as ideias técnicas e as ideias políticas do linguista Noam Chomsky. Chomsky fez parte de uma vanguarda intelectual que feriu de morte o determinismo cultural da língua. Antes de qualquer técnica de análise do genoma, ele mostrou por A + B (quase literalmente) que nós temos um aparato biológico cognitivo para a aquisição da língua. Se não houvesse tal aparato, a aquisição da língua seria inexplicável. Chomsky pode ser meio maluco em política, mas é essencialmente alguém contrário ao autoritarismo. Ele sabe também que esse mesmo aparato nos permite gerar uma infinitude de frases e combinações a partir de um vocabulário finito. Não importa o quão poderosa seja a autoridade que esmaga as pessoas menos potentes, as últimas sempre terão essa vantagem contra o autoritarismo, e é uma vantagem que é biológica. O coturno do desmando pode tentar pisotear a expressão e o pensamento, pode ter um sucesso longo nisso, mas nós temos um arsenal literalmente infinito de formas de driblar o cala-boca. Se os deterministas culturais estivessem corretos, essa esperança de Chomsky, de uma defesa eterna que aflora da natureza humana contra o autoritarismo, estaria morta. Os ditadores escreveriam o que quisessem na “folha em branco” humana. Felizmente, estão errados.

5 Um dos efeitos colaterais da tribalização cultural em que estamos metidos é o odioso pseudo-conceito de “lugar de fala”, que pretende colonizar determinadas discussões e se apropriar de um vocabulário com o intuito de, a meu ver, impedir, privatizar o debate. Concorda, discorda, nem tanto ao mar nem tanto à terra?

A briga dos defensores do “lugar de fala” não é nem com o liberalismo, nem com a direita, nem com o que alegam que é “fascismo”. É com milênios de estudo cuidadoso da lógica por pessoas de todas as culturas, sexos e cores. A briga deles é com Aristóteles, que, em seu “preconceito do bem”, querem reduzir a um “homem branco hétero” qualquer. Como se a coisa mais interessante sobre Aristóteles fossem essas marcações identitárias acidentais. O fato é que ninguém ganha vantagem como descobridor da verdade por opressões, reais ou imaginadas. Se forem opressões reais, a probabilidade maior é que a pessoa seja analfabeta, pouco educada, pouco lida, ou, para não restringir a sabedoria ao livresco, pouco propensa a ter tido tempo de observar e pensar sobre as coisas, estando mais preocupada com a sobrevivência. Se forem opressões imaginadas, pior ainda: quem tem tempo de imaginar opressões já denuncia o próprio privilégio que acusa os outros de ter, e a própria histrionia. É gente de barriga cheia de pão que quer nos convencer de que a própria pança é de esquistossomose. O real oprimido tem ao menos algum grau de senso comum, um poço imemorial de verdades úteis. O pseudo-oprimido não tem nem isso, pois foi possuído por uma ideologia com fobia da verdade. Verofobia.

Falemos em bom português: têm medo que alguém diga a verdade de que, se um grupo realmente é oprimido, é muito mais fácil achar quem fale com olho clínico dessa opressão entre aqueles que não são alvo dessa opressão. Talvez até em meio ao grupo estereotipado dos “opressores”. Claro, gente como Frederick Douglass e Luiz Gama, que fala com propriedade do que sofreu, é fundamental neste mundo. Porém, globalmente falando, foram justamente as culturas hoje xingadas de “opressoras” que pensaram nas soluções para opressões como a escravidão, e que primeiro “problematizaram” a condição de escravo como intrinsecamente opressiva. Douglass e Gama falavam na esperança de que pessoas de qualquer cor entendessem o erro que foi a escravidão negra, não para ganhar monopólio de poder falar a respeito em função da própria cor. Eles queriam tornar a cor algo irrelevante na aspiração humana à liberdade. É o exato oposto do que os idiotas identitários hoje fazem. Ninguém partilha da sabedoria de Douglass e Gama por ter deles a mesma cor. Ninguém se torna uma Mary Wollstonecraft por ter dela o mesmo sexo. E eu certamente não tenho mais propriedade para falar de casamento gay por ser gay, não mais que o grande número de heterossexuais que abraçaram a ideia e foram enorme parte dos responsáveis pela ideia ter se concretizado.

Ao cabo, a ideia do “lugar de fala” termina em condescendência: na expectativa de que você fale de racismo de certo jeito por ser negro, uma expectativa que é ela mesma racista, como disse o escritor James Baldwin: “Tenho um método para descobrir se meus colegas escritores brancos são racistas. Consiste em proferir idiotices e manter teses absurdas. Se eles ouvem respeitosamente e, ao final, me enchem de aplausos, não tenho a menor dúvida: eles são uns malditos racistas.” Talvez os ativistas identitários estejam pregando essa peça ao defender a tese absurda do “lugar de fala”.

O “lugar de fala” cai na expectativa de que os sentimentos de uma mulher que abortou contenham a argumentação necessária para descriminalizar a prática, uma ideia risível de tão ingênua. Por falar em risível: o “lugar de fala” agora está no jargão de obesos que glorificam a obesidade e atacam a ciência médica que já se cansou de mostrar as várias más consequências da obesidade à saúde. A nau dos loucos já chegou, é a política identitária e sua seleção maravilhosa de ideias tolas, inclusive as tolamente assassinas.

6 Tenho a vaga impressão de que todo esse carnaval identitário fará a fortuna de psiquiatras daqui a uma ou duas gerações. Longe de mim defender dogmatismos extemporâneos, não sou lá muito careta e sei que a personalidade humana é complexa e cheia de nuances, mas essa metamorfose incessante e randômica não me parece saudável. Faz sentido esse meu temor?

Faz todo sentido. Um terapeuta britânico me recomendou um livro de autoajuda que, para minha surpresa, continha uma ideia preciosa. O livro é Velvet Rage, de Alan Downs. Foi recomendado com a ressalva de que era “americano demais”, o que é verdade. Mas a ideia que eu gostei é a seguinte: o armário faz mal às pessoas da “sopa de letrinhas” porque, especialmente a longo prazo, o fingimento identitário é doloroso. E não são só essas pessoas. Atendentes de telemarketing sabem o que é isso: fingir para o cliente mal-educado que se importam com ele é algo que cansa e erode o bem-estar psicológico. Ao menos os atendentes podem descansar fora de horário comercial ou mudar de emprego. O sentimento de não estar sendo sincero quanto à própria identidade Downs chama de “inautenticidade”. Este é um problema que não é só de gays e lésbicas no armário: é um problema de pessoas negras que aprenderam que só há beleza fora do próprio fenótipo, e de mulheres e gordos com problemas mais graves de autoimagem. Essas pessoas recebem um falso conforto da política identitária. É falso porque a política identitária substitui uma inautenticidade por outra. “Lugar de fala”, “falsa simetria”, “objetificação”, “solidão da mulher negra”, “gordofobia”, “Brasil é o país que mais mata LGBT no mundo”, “negros = pretos + pardos” e demais componentes do jargão identitário são um papo inautêntico. Não é possível acomodar tanta besteira numa cabeça sem algum grau de dissonância cognitiva, desconforto e inautenticidade. Esses jargões se traduzem como monopólio da fala e apoio à censura, duplo padrão moral, inveja de quem é atraente e bem-sucedido, e papagaiar de fake news sem fonte. Você está tentando ter cuidado de não usar de hipérbole, mas eu penso que você não foi longe o suficiente. Os consultórios psiquiátricos ficarem lotados é na verdade o melhor dos cenários futuros aqui. O efeito da loucura identitária pode ser bem mais amplo e os estragos potenciais são mais sistêmicos: erosão de qualquer marca de qualidade para um foco não no que foi feito, mas em características pessoais arbitrárias de quem fez. No mundo anglófono nem comunidades de tricô estão escapando da cooptação identitária. O identitarismo tem um efeito de pólvora por atrair como retaliação ainda mais identitarismo.

Não digo isso fazendo as vezes de oráculo, mas porque acho que dá para evitar que vire tragédia. Dá para evitar mais casos como David Reimer. Dá para relembrar que a igualdade perante a lei é um princípio basilar raro, conquistado a duras penas depois de muito sofrimento, e que nenhuma vontade de “tratar os desiguais desigualmente” supera a importância desse princípio. Dá para reforçar que adivinhômetro de intenções de juízes e promotores vale menos que evidências produzidas em juízo. Para estancar a loucura, não vai ser suficiente argumentar. Até a revista Nature, enquanto publica artigos técnicos que mostram a diferença entre os sexos, ao mesmo tempo publica artigos na seção de opiniões e comentários que falam o contrário, e os últimos são muito mais lidos. Já vi até geneticistas de renome internacional levando tombos lógicos para tentar conciliar a genética com tabus politicamente corretos. Vai ser necessário rir, ridicularizar, apontar a nudez dos reizinhos das identidades arbitrárias ocupando seus troninhos de lugar de fala. Contamos com ótimos comediantes para isso. Dave Chappelle já reagiu. Ricky Gervais não se deixou intimidar. Humor é para isso mesmo: atenuar o peso das questões preocupantes que estamos enfrentando, política identitária sendo uma delas. Estou otimista, pois concordo com Chomsky: no fim das contas, somos uma espécie vacinada contra autoritarismos, e temos o senso comum para nos salvar do besteirol ideológico. Enquanto a idiocracia estiver firme e forte, enquanto não colapsar sob o peso das próprias contradições, temos o direito sagrado de nos divertir à custa dela.

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