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Woody Allen (Divulgação)
Woody Allen (Divulgação)| Foto:

Poucas semanas atrás, eu comemorava o anúncio da autobiografia de Woody Allen, um dos grandes artistas vivos e ativos, pela corajosa editora Hachette, que faria o que tinha de ser feito: um contrato com o cineasta e escritor que tem muito o que dizer.

Eis que a editora Hachette – triste fim, Deus a tenha em sua glória – capitulou ante “protestos” e fez o que não deveria ser feito nunca: cancelou o contrato com o cineasta e escritor que tem muito o que dizer.

Pior do que a censura é a autocensura.

Em meio à pandemia, Apropos of Nothing foi discretamente publicado pela Arcade. Três vivas à Arcade! Nunca te vi, sempre te amei.

Mas vamos aos fatos e ao que se pode aprender com eles.

Woody Allen foi casado com a atriz Mia Farrow, e o divórcio resultou tempestuoso como o próprio casamento. Ele se apaixonou por Soon-Yi Previn, filha adotiva da própria esposa. Casaram-se e estão casados até hoje. A esquisitice deu no que falar. A moral da história não é muito moral, a depender dos critérios de quem julga. Mas continuamos no terreno do julgamento moral.

O fato é que Mia Farrow não lidou bem com a situação e, nos anos 90, acusou o diretor de abusar de Dylan Farrow, sua filha, quando criança. A história, os detalhes, as testemunhas, as contradições, o depoimento da suposta abusada produziram mais dúvidas que certezas, e as investigações deram em nada. Sejamos precisos: as investigações deram na inocência de Allen.

Ocorre que, muitos anos adiante, o caso seria resgatado pelo outro filho de Mia, Ronan Farrow. Ele se aproveitou da voragem acusatória que se seguiu à descoberta dos crimes do poderoso Harvey Weinstein, e voltou à carga contra o Woody Allen.

Sem prejuízo das acusações verdadeiras e das verdadeiras vítimas, acredito que muita publicidade e senso de oportunismo andaram se intrometendo na memória subitamente casta dos moradores de Hollywood e arredores.

Importa notar que ninguém apontou Allen como assediador, em meio ao movimento #metoo. Ao contrário, atrizes consagradas e promissoras disputavam espaço em seus filmes. Bastou, no entanto, que o denuncismo se tornasse obrigatório, quase uma ética pública, para que se lembrassem de suas indiscrições sexuais.

Isso é mais grave do que parece à primeira vista. O devido processo legal e a presunção de inocência estão suspensos por tempo indeterminado, ou enquanto renderem os dividendos do macarthismo esquerdista nos EUA e mundo afora.

Porque, sejamos diretos, é bem disso que se trata: uma versão neopuritana, circunstanciada e ideológica de tantos outros episódios bastante conhecidos, e bastante denunciados a seu tempo, tidos como irrepetíveis, mas devidamente repetidos.

Da perseguição inquisitorial aos expurgos stalinistas, do macarthismo ao #metoo, o ímpeto é semelhante, senão idêntico: todo acusado é culpado, até prova em contrário. Melhor: todo acusado é culpado, a despeito de prova em contrário.

Cada época tem seus valores sagrados, sua moral irrecorrível, seus santos imaculados, seus dogmas inexpugnáveis, suas igrejas infalíveis. E os pecadores que não merecem salvação.

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