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Brasil tem potencial para GovTechs, mas Poder Público precisa fazer a sua parte

Fernando Bittencourt Luciano

Fernando Luciano é diretor da Hotmilk, ecossistema de inovação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), professor e pesquisador da área de Biotecnologia também na PUCPR. Graduado em Farmácia e Bioquímica de Alimentos pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também é doutor em Food and Nutritional Sciences pela Universidade de Manitoba, no Canadá, onde foi bolsista do governo canadense. Atuou também como pesquisador no Guelph Research and Development Centre, no Canadá, e como docente convidado na Universidade de Valência, na Espanha. No campo do empreendedorismo, é CEO do NASSLE Group, focado em P&D, sua terceira startup.

Gestão pública

Brasil tem potencial para GovTechs, mas Poder Público precisa fazer a sua parte

26/04/2022 18:31
Não é exagero afirmar que o Brasil é um celeiro de startups. Há anos o país vivencia uma crescente nos investimentos nesse tipo de companhia. No ano passado, foram US$ 9,4 bilhões destinados ao mercado de inovação nacional, US$ 5,9 bilhões a mais do que se teve em 2020, segundo dados da Distrito. Além disso, o país já tem mais de 20 “unicórnios”, startups avaliadas em pelo menos US$ 1 bilhão. Entre fintechs, edtechs, foodtechs, agritechs, healtechs e tantas outras techs, há um segmento que ainda pode parecer pouco significativo no país, mas tem potencial para crescer mais e mais a cada ano: as GovTechs. Segundo o estudo “RegTech 2021: posicionamento estratégico”, realizado pela KPMG com apoio da Distrito, 90,2% das startups do gênero no país têm como objetivo ampliar a eficiência na gestão pública.
O relatório “As Startups GovTech e o futuro do governo no Brasil”, parceria do BrazilLAB com o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), traz a definição de que o conceito de GovTech, junção de “governo” e “tecnologia”, “representa a aplicação eficiente de soluções tecnológicas inovadoras aos serviços de interesse público, como forma de impactar positivamente as políticas públicas e alcançar melhorias efetivas e de larga abrangência à vida dos cidadãos”. Assim, num país conhecido pela burocracia e lentidão de muitos serviços públicos, as GovTechs geram grandes expectativas.
Importante também lembrar que o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador (Lei Complementar n. 182/2021) trouxe uma modalidade especial de licitação para contratar pessoas físicas ou jurídicas com o objetivo de testar inovações, o chamado Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI).
Apesar disso, ainda há obstáculos consideráveis a serem levados em conta. A começar que, por mais que o Marco Legal de 2021 tenha trazido avanços, nosso governo tem como uma de suas características a pouca margem de experimentação. É um traço cultural do Poder Público do país.
Outro desafio que atrasa a inovação na Administração Pública é o apego à “sucessão” das gestões. Afinal, a cada dois anos, temos eleições – ora para escolher os representantes municipais, ora para escolher os representantes estaduais e federais. No Executivo, nos casos em que a chapa da situação não vence, é comum que o novo governante dispense tudo o que foi realizado na gestão anterior para poder imprimir a sua “marca”. Nos anos eleitorais, então, nem se fala: fica tudo parado, muito porque muitos governantes se licenciam para concorrer ao Congresso ou às assembleias. É uma briga política que tem um perdedor claro: o usuário dos serviços públicos.
Um case bastante interessante, digno de inspiração, é o da Estônia, considerado o segundo país do mundo em termos de maturidade em governo digital – perde apenas para a ultra tecnológica Coreia do Sul. Pequeno país localizado no Norte da Europa, a antiga república soviética possui cerca de 1,3 milhão de habitantes, que podem até mesmo votar de forma online, por meio de um aplicativo instalado no PC ou no smartphone vinculado ao “RG digital” do cidadão, que já é usado por quase todos os estonianos.
Para fazer da Estônia uma referência em e-gov, políticos, juristas e especialistas em tecnologia precisaram se unir e não medir esforços rumo à transformação digital, embasada em investimentos em tecnologia, sistemas de segurança e legislação. A educação, é claro, também foi fundamental, já que um programa para conectar todas as escolas da Estônia foi a medida pioneira para a digitalização quase que integral do país, aliada à introdução da tecnologia na sala de aula. Além disso, foram implementados programas de “alfabetização digital” para idosos e pessoas sem familiaridade com meios digitais.
Não sejamos, porém, injustos: o Brasil tem evoluído. O ranking GovTech Maturity Index 2020, do Banco Mundial, traz o país na sétima colocação de mais alta maturidade em governo digital, justificada em muito pelo avanço da plataforma gov.br, que no segundo semestre do ano passado dispunha de mais de 115 milhões de usuários – a título de comparação, em janeiro de 2019 o número não chegava a 2 milhões. A população conta com soluções digitais que vão do auxílio emergencial às Carteiras de Trabalho e de Trânsito, chegando ao Pix. A nível local também há iniciativas interessantes, como o Saúde Já, da Prefeitura de Curitiba, para acompanhar datas de vacinação e marcar consultas.
É preciso ressaltar, contudo, que transformação digital não é sinônimo de digitalização, de tirar um processo do papel e, simplesmente, transferi-lo para um software. Claro que é ótimo termos uma Carteira de Motorista ou de Trabalho digital, conseguirmos tirar uma simples segunda via de um documento sem ter que passar horas em uma fila, mas o potencial de benefício ao cidadão é imenso se pensarmos no volume de dados que nossos governos possuem. Transformação digital envolve uma mudança de mentalidade, ligada à flexibilidade e à agilidade, com foco no usuário. E para que o foco recaia sobre os cidadãos, é preciso criar as soluções e validar o produto junto a eles; é necessário estruturar e abrir os dados (não sensíveis) para que empresas de tecnologia possam beber dessa fonte e criar soluções para as pessoas.
Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os seguintes pontos devem ser constatados para que um governo seja considerado digital: 1) o governo é uma plataforma; 2) é aberto por definição; 3) o setor público é orientado por dados; 4) é desenhado digitalmente; 5) orienta-se para/pelo o usuário; e 6) proatividade.
Na Estônia e em Singapura, outro destaque em termos de governo digital, o design dos serviços públicos leva em consideração os eventos das vidas dos cidadãos, gerando uma entrega intuitiva e automatizada, sem haver a necessidade de se buscar o governo pessoalmente. Por exemplo, em vez de aguardar que o cidadão busque o cartório para registrar um novo nascimento, os hospitais podem fazer isso automaticamente quando atualizam o perfil de saúde da mãe após o parto e os pais têm a possibilidade de, em conjunto, adicionar o nome do recém-nascido e outras informações relevantes. Da mesma maneira, os dados acrescentados ao sistema podem ser acessados por outras agências governamentais para utilizar a informação de maneira efetiva. Ao ter os dados dos recém-nascidos, o governo consegue estimar a demanda por serviços médicos em uma determinada região ou planejar a necessidade de creches e escolas. Esse tipo de ação melhora radicalmente a vida em sociedade e aumenta a eficiência do governo.
Para o nosso Brasil, o caminho deve ser longo, mas não impossível. Uma certeza, entretanto, eu tenho: precisamos mudar essa filosofia de criar planos mirabolantes sempre que houver uma eleição, ou seguiremos no ritmo de “dois passos para a frente e um para trás”. O governo digital precisa ser plano de Estado e não de mandato.

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