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Jaime Lerner reflete sobre o papel da cidade na felicidade das pessoas.
| Foto: Divulgação

E chegou 2021! Viraram-se as folhinhas do calendário e 2020 ficou para trás, um ano em que, coletivamente, nos deparamos com desafios que testaram os limites de nossa resiliência. E eis que, em rituais talvez mais esparsamente partilhados que em festejos anteriores, tivemos a oportunidade simbólica de nos despir das angústias do ciclo que se encerrou e contemplar os meses que se aproximam com a esperança renovada.

Resoluções foram tomadas e votos de felicidade foram enunciados em brindes presenciais ou virtuais. E aí, talvez, no íntimo de cada um, tenha se esgueirado uma das questões mais fundamentais da história do pensamento humano: o que, afinal, é essa tal felicidade?

Evidente que não é esse texto que vai dar a resposta. Mas vale assinalar que esse é um tema que, nos últimos anos, foi colocado na vitrine em inúmeras publicações, seminários, cursos, lives e até como disciplina universitária. E, para além de uma questão trabalhada na esfera do indivíduo, ascendeu também para a escala do coletivo.

Em 1972, o então rei do Butão propôs uma nova medida para a riqueza de um país, para além do onipresente PIB; algo que incorporasse dimensões de felicidade coletiva e do bem- -estar de uma população: o FIB – Felicidade Interna Bruta.

A provocação foi ganhando corpo e, em 2011, a Assembleia Geral das Nações Unidas promulgou a resolução 65/309 - Felicidade: Rumo a Uma Definição Holística de Desenvolvimento, destacando sua busca como um objetivo humano fundamental e propondo aos países-membros qualificar e quantificar esse propósito. Já no ano seguinte, foi publicado o primeiro Relatório Mundial da Felicidade, oferecendo um panorama analítico comparativo da felicidade percebida entre as nações. Não é o único de sua natureza, mas adota uma metodologia interessante, na qual o respondente é convidado a escalonar o quão satisfeito está com sua vida. São avaliados, além dos convencionais PIB per capita e expectativa de vida, variáveis como suporte social, liberdade de escolha, generosidade e percepção da corrupção.

O World Happiness Report 2020 inovou ao incluir 186 cidades no estudo, apresentando o primeiro ranking global e análise de cidades e felicidade com base no bem- -estar relatado por seus residentes. Muito resumidamente, as cidades no topo da classificação são aquelas que oferecem melhores condições econômicas e oportunidades; que combinam níveis mais elevados de renda, conectividade e confiança; e nas quais as pessoas identificam um sentimento de pertencimento.

Como parâmetro de desempate, são os níveis mais elevados de confiança social e institucional que são essenciais para aumentar a felicidade e reduzir a desigualdade. Nas posições mais baixas do ranking estão regiões com economia e infraestrutura precárias, às vezes destruídas por guerras e catástrofes naturais, com tecido social fragilizado e níveis mais baixos de confiança e alta percepção da corrupção.

Nesse ponto, caberia lembrar a contribuição de Aristóteles (384–322 a.C.) sobre o tema, tendo em mente que uma tradução direta não transmite o sentido completo dos termos originais. O estagirita propõe a felicidade (eudaimonia) como o maior bem humano e o propósito de uma vida bem-sucedida. A felicidade seria uma empreitada ética que exige a prática constante da virtude/excelência (aretē) que é ao mesmo tempo empreendida individual e coletivamente e que, portanto, só pode ser alcançada no exercício da polis (cidade).

Voltemos, pois, ao nosso brinde do começo do texto, com a proposta de um adendo. Brindemos as nossas cidades. Reflitamos, nas palavras do arquiteto Lerner, sobre o sonho compartilhado que nelas podemos construir. No como podemos fazer da cidade o palco desse experimento ético capaz de alicerçar o sucesso de todos e de cada um.

É memória um tanto dolorosa em tempos de pandemia, mas o maestro Tom Jobim já cantava “é impossível ser feliz sozinho”. Ainda que a felicidade possa ser encontrada em momentos de solitude, o ser humano é gregário, e a cidade é a manifestação física disso. Vamos planejar, desenhar, fazer cidades que alimentem nossas necessidades de beleza, segurança, inclusão, união, expressão e crescimento. Cidades com muitos espaços de qualidade para celebrar nossa humanidade e seu potencial de felicidade (ainda que de máscara por mais algum tempo)!

JAIME LERNER é arquiteto e urbanista.
ARIADNE DOS SANTOS DAHER é urbanista, professora da Universidade Tuiuti do Paraná e sócia do escritório Jaime Lerner Arquitetos Associados.

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