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Arte e cidade: Ópera da Serra da Capivara, PI.
Ópera da Serra da Capivara, Piauí.| Foto: Joaquim Neto. Direção de Arte Felipe Guerra/Urbe Arte.

Há seis anos eu estava em uma expedição pelo Brasil profundo na Serra da Capivara, Piauí, para conhecer o maior sítio arqueológico de pinturas rupestres do mundo. Foi então que me deparei com um conjunto específico de desenhos que traziam claramente a representação de manifestações artísticas, com direito a trajes elaborados, formações e coreografias.

Essas imagens com mais de 50 mil anos me despertaram um pensamento em relação ao contraponto das artes, da necessidade humana de viver em comunidade e da sua importância na construção e desenho das cidades. Já ali, em um mundo ancestral, em povos nômades e que se fixavam por grandes temporadas em cavernas, o ato de pintar, representar, adorar e se manifestar já despendia de espaços próprios.

A minha relação com arquitetura, urbanismo, cenografia e carnaval talvez tenha estimulado uma curiosidade pelo assunto e o convite para ministrar aulas de pós-graduação sobre esse tema me embalaram a estudar um pouco mais sobre isso.

A arte pode ser capaz de modificar a cidade ou é a cidade que transforma, embala e inspira a arte? Uma coisa é certa, a manifestação cultural está diretamente ligada à efervescência dos centros urbanos, onde a troca e o encontro acontecem.

O teatro, que tem acompanhado o desenvolvimento da humanidade há milênios, nasceu como representação primitiva do cotidiano e da natureza. Aos poucos, foi se modificando em formatos ritualísticos de adoração ao sobrenatural. O que outrora despendia de pouca estrutura, na Grécia antiga passa a ocupar grandes arenas construídas em encostas, com preocupações acústicas e cênicas. O teatro se consolida e começa a ocupar lugar de destaque no tecido urbano das cidades. Com o desenvolvimento das técnicas construtivas, os espaços dedicados à arte tornam-se grandes referências arquitetônicas e ponto de encontro dos que construíram nossa identidade.

Olhando para o nosso Brasil, podemos observar como os festejos modificam temporariamente ou em definitivo o tecido urbano das cidades. No mês de junho, o Nordeste se transforma e as ruas ganham cores e novos usos. No interior da Amazônia, em Parintins, tudo e todos se dividem nas cores azul ou vermelho para dançar o Boi. No carnaval, um país todo para e explode das mais variadas formas, para se permitir ser qualquer personagem por cinco dias. Nessas e em tantas outras manifestações culturais, pode-se notar uma profunda mutação do ambiente urbano, com a alteração do espaço e do uso, onde ruas viram passarelas, praças viram arenas e o vínculo da vida em comunidade é a fonte de inspiração e o combustível para a produção artística.

Também podemos notar grandes personagens da história que usaram seu talento como ferramenta urbana. Como não admirar Burle Marx, que imprimiu a arte nas calçadas do Rio de Janeiro, transformando a cidade em uma grande tela de pintura. Ou Jaime Lerner, meu professor, que deu design ao transporte público de Curitiba. Ou, ainda, Niemeyer que transcreveu as curvas da natureza em concreto armado.

Os urbanistas artistas, ou então artistas urbanistas, certamente foram e são capazes de criar ambientes mais sensíveis e humanos. Mas não são apenas as grandes obras que transformam. Os artistas de rua são os verdadeiros agentes criadores contemporâneos, capazes de expressar e ressignificar o entorno e de revelar em paredões e muros insossos nossa verdadeira identidade.

Que esse carnaval pandêmico tão atípico, sem gente junta, sem ruas coloridas, sem fantasia, sem batuque nem tamborim, que esse hiato nos desperte para a real importância da cultura nas nossas vidas – pois é ela que tem nos acompanhado nesses dias tão cinzas. Que as cidades e suas autoridades protejam o que nos torna tão únicos e que sejam o eterno palco da nossa ARTE.

JAIME LERNER é arquiteto e urbanista.
FELIPE GUERRA é arquiteto e integra a equipe do escritório Jaime Lerner Arquitetos Associados.

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