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Robson Vilalba/Thapcom
Robson Vilalba/Thapcom| Foto:

Saio para almoçar com colegas universitários. Somos seis. Olhamos para os cardápios e eu, na minha santa inocência, peço um prato de carne (leitão, sempre leitão, o meu reino por um leitão). Os outros cinco dividem-se entre peixe (três) e saladas (dois). Pelos vistos, sou o carnívoro da mesa.

Um silêncio embaraçoso desce sobre os comensais, como se alguém tivesse contado uma piada de mau gosto. Não me rendo. “Sou o único a comer carne?”, pergunto.

Sorrisos. Um deles confessa que é vegetariano desde a adolescência. Dois dizem que estão a cortar no consumo. Os outros não se pronunciam. Mas, pelos seus rostos, eles fazem lembrar certos missionários quando descobriam que a tribo era composta por canibais. O horror, o horror.

Quando o prato chega, o meu apetite diminuiu um pouco. Aproximo o garfo da carne e penso no pobre leitão a ser morto e cozinhado para deleite da minha gula. Será justo?

Mentira. Comi tudo sem sentimento de culpa. Mas a pergunta, óbvia, fica: estaremos a presenciar um daqueles momentos em que uma prática cotidiana deixa de ser aceitável aos olhos dos civilizados?

Pense na escarradeira, leitor, e não faça essa cara: nos séculos 19 e 20, por motivos sociais e sanitários, era de bom tom escarrar na dita cuja. Hoje, a prática seria aberrante. Será que consumir carne ficará tão démodé como usar a escarradeira pública?

A edição portuguesa do Courrier Internacional diz que sim. Ou quase. Nos países industrializados, cada habitante consome, em média, 76 quilos de carne por ano. É muito? Bom, digamos apenas isso: se as contas estão certas, eu, todos os anos, como o equivalente a um João Pereira Coutinho inteiro.

Mas o número verdadeiramente horripilante é outro: em todo o mundo, 50 bilhões de animais são abatidos anualmente para enfeitar nossos pratos. 50 bilhões.

Verdade: se não fossem consumidos, haveria espécies que já não existiriam. Mas isso não seria necessariamente mau: se o gado contribui para o aquecimento global com a emissão dos seus gases, um pouco de frescura seria uma bênção para o clima, dizem os entendidos.

Acontece que a crítica mais poderosa contra o consumo de carne não vem dos ambientalistas. Vem dos antiespecistas. Na França, o número de ataques a açougues (e a açougueiros) tem aumentado dramaticamente. Argumento deles? Nós, humanos, não somos superiores à restante criação animal. Os animais, tal como nós, são dotados de “senciência”, ou seja, são capazes de experimentar sensações e sentimentos como a dor e o prazer. Donde, usar os animais como nossos recursos – na alimentação, no entretenimento, na pesquisa médica – é um crime que deve ser combatido.

Entendo os antiespecistas. E entendo os antiantiespecistas, sobretudo os mais elegantes, como Roger Scruton, para quem o nosso dever de reverência e humildade perante o mundo natural implica certas virtudes no trato com os animais. Podemos comê-los, sim. Mas isso implica tratá-los humanamente em todas as fases do processo: na criação, na matança e no consumo (moderado).

Assino embaixo. Mas, com maior ou menor elegância, há certas “verdades duras” que são incompatíveis com a posição antiespecista. Para começar, não creio que pessoas e animais habitem o mesmo patamar moral. A nossa racionalidade, a nossa imaginação, o nosso sentido de dever ou de pudor colocam-nos acima da restante criação. Sim, tal como os animais, somos dotados de senciência. Porém, ao contrário deles, temos mais do que senciência. É por isso que, como afirma Scruton acertadamente, comer animais ou comer seres humanos não é a mesma coisa – mesmo para vegetarianos (ou veganos) moderados.

Por outro lado, se não habitamos o mesmo patamar moral, a superioridade dos homens sobre os bichos parece-me um fato incontornável. E, quando o assunto lida com a nossa sobrevivência por oposição ao bem-estar ou à sobrevivência dos animais, o meu coração não hesita.

Abomino touradas. Abomino a exploração de animais para gáudio das massas. Mas como sustentar, com cara séria, que as pesquisas in vitro ou in silico (por simulação computacional) podem substituir todas as experiências in vivo? Infelizmente, ainda não podem. Deixar de usar animais na pesquisa científica significaria deixar de encontrar respostas terapêuticas para doenças humanas. Não estou disposto a esse sacrifício.

E o meu leitão? Admito: não tenho defesa. Se a nossa sobrevivência não passa pelo consumo de carne, só uma mistura de tradição, prazer e palato justifica as minhas investidas gastronômicas.

Aos olhos do futuro, serei um selvagem, talvez. E não será de excluir que, em museus ou livros de História, a minha foto será mostrada para ilustrar a barbárie do século 21. Ao meu lado estará a escarradeira dos séculos anteriores.

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