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Dominic Cummings, conselheiro especial de Boris Johnson, saindo da residência oficial do primeiro-ministro da Inglaterra.
Dominic Cummings, conselheiro especial de Boris Johnson, saindo da residência oficial do primeiro-ministro da Inglaterra.| Foto: Isabel Infantes/AFP

Especialistas vários afirmam que o fenômeno populista começou em 2016, com o Brexit e com Donald Trump. Erro, claro. O populismo, em maior ou menor grau, sempre esteve presente nas democracias liberais, pelo menos desde que o Partido Populista se deu a conhecer em finais do século 19, nos Estados Unidos.

Além disso, nunca comprei a versão de que Brexit e Trump são uma e a mesma coisa. Não são. O Brexit, para além das manipulações e falsidades, também lidou com uma questão fundamental que sempre fez parte da história britânica: a legítima vontade daquela ilha em não ser governada do exterior. Respeito isso.

Essa introdução serve para justificar a minha resistência ao filme Brexit: The Uncivil War, de Toby Haynes. Temia que a obra fosse uma caricatura boçal dos “brexiteers”, com Dominic Cummings à cabeça – convém lembrar, foi o estratego da campanha pela saída e é atualmente o conselheiro-mor de Boris Johnson. Um príncipe das trevas, em suma.

Seria um erro explicar o Brexit apenas com bots e algoritmos. A tecnologia só funcionou porque havia uma realidade de angústia por trás

Mas cedi, a conselho de amigos. Fiz bem. No filme, Cummings (excelente Benedict Cumberbatch) ganha uma outra ambiguidade. De tal forma que quase o confundimos com o establishment político e midiático que ele elegeu como inimigo. Cummings abomina plebiscitos e a tribalização que eles provocam na sociedade; e até abomina a política da nostalgia que promete passados gloriosos aos descrentes do presente.

Mas há uma grande diferença entre Cummings e o establishment: no momento em que ele é o escolhido para liderar a campanha pelo “leave”, Cummings inicia o seu trabalho de campo. Por “trabalho de campo”, entenda-se: horas e horas e horas passadas nos pubs, a escutar os ingleses anônimos sobre tudo aquilo que os aflige ou deprime.

Ironicamente, esse “trabalho de campo” também será realizado por Craig Oliver, o estratego do “remain”. Mas é um trabalho no ambiente asséptico do seu grupo de foco, que ele tenta, abusivamente, esclarecer e orientar. Em vão. Na melhor sequência do filme, uma inglesa de meia-idade, branca, provavelmente “working class”, que faz parte desse grupo de foco, se revolta contra o paternalismo ao redor e grita que está cansada de não poder dizer o que pensa. “Sinto que a minha vida já não faz sentido”, diz ela, para espanto de Craig Oliver.

Só nesse momento o estratego do “remain” percebe uma evidência: a campanha pela saída leva uma vantagem de 20 anos. É impossível reverter essa vantagem em poucas semanas. E quando Oliver, em encontro fortuito com Cummings, o acusa disso mesmo – o ressentimento dos ingleses é um rio subterrâneo que corre há muito tempo –, a resposta de Cummings é ainda mais arrasadora: e o que é que o establishment fez para que isso não acontecesse?

Boa pergunta. Decisiva pergunta. Na história do Brexit, conhecemos a forma como o “leave” exagerou e mentiu aos eleitores. O filme não se esquece disso, lembrando a importância das redes sociais e da manipulação de dados de usuários para fazer passar a mensagem – “take back control” – com demolidora eficácia.

Mas seria um erro explicar o Brexit apenas com bots e algoritmos. A tecnologia só funcionou porque havia uma realidade de angústia por trás. Uma realidade que Cummings, e não Oliver, se deu ao trabalho de conhecer. Nos pubs, nas pequenas vilas, nas casas pobres dos ingleses cujas vidas já não faziam sentido.

Qualquer pessoa remotamente interessada no fenômeno populista tem de assistir a Brexit: The Uncivil War. O filme explica com talento e leveza o que quilos e quilos de bibliografia parecem incapazes de captar: o populismo colhe tempestades, muito antes de as semear. São as tempestades que uma classe política obsoleta fez de tudo para esquecer.

Só mais uma coisa: ninguém sabe como o Brexit vai terminar. Mas, depois de assistir ao filme, entendo por que motivo a mesma oposição que acusa Boris Johnson de ser um ditador não deseja a melhor forma democrática para o afastar do poder: eleições. Paradoxal?

Não tanto. Para começar, todos os “remainers” sabem o que aconteceu quatro meses atrás, nas eleições europeias: o Brexit Party venceu, confirmação empírica de que os eleitores não mudaram de opinião desde o referendo de 2016. As pesquisas, aliás, sempre o confirmaram. Por outro lado, os “remainers” também sabem que Dominic Cummings, muito provavelmente, estaria na campanha ao lado de Boris Johnson. Depois de ter feito um novo trabalho de campo.

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