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Matar o tempo
| Foto: Bruno Germany/Pixabay

O problema da pontualidade é que nunca está lá ninguém para a apreciar. Dito espirituoso, conhecido, dramaticamente verdadeiro. Sou testemunha. Quando chego, não há testemunhas. De tal forma que, com a idade, com a experiência, com a carência, comecei a levar serviço só para preencher o tempo. Já comecei e terminei certas obras durante a espera – Guerra e Paz, Anna Karenina, por aí. Aprendi a costurar. Faço pedicure com certo grau de profissionalismo. E os meus cochilos atravessam as cinco fases clássicas do sono. Quando acordo e o companheiro finalmente aparece, constato com tristeza que o room service já não é o que era. Ele nem sequer trouxe o café da manhã numa bandeja.

Alguns amigos, profissionais do atraso, acusam-se de “intransigência” com a pontualidade (“Você é algum nazista, por acaso?”). E aconselham, em nome da minha saúde, um pouco mais de tolerância (“Ninguém morre”). Tentei. Violando a minha natureza, comecei a chegar com 10, 20, 30 minutos de atraso. Não funcionou. A pessoa por quem esperava acrescentou 10, 20, 30 minutos de atraso ao seu atraso habitual, como se houvesse uma força magnética entre nós, impedindo um encurtamento da distância.

Amigos profissionais do atraso acusam-se de “intransigência” com a pontualidade e aconselham, em nome da minha saúde, um pouco mais de tolerância. Tentei, mas não funcionou

Agora que penso nisso, talvez o caminho seja eu chegar com antecedência: se eu recuar 10, 20, 30 minutos, talvez o camarada possa recuar um pouco no seu atraso e chegar à hora combinada. Vou experimentar.

Moral da história? Definitivamente, não estou rodeado por protestantes, muito menos por calvinistas. A pontualidade, um conceito inexistente na civilização greco-latina, foi um produto da Reforma: desse momento em que a relação dos homens com Deus dispensou a mediação institucional e a conduta humana, nos seus detalhes mais cotidianos e ínfimos, passou a ser vigiada pelo patrão lá de cima. A industriosidade é filha dessa nova relação de vigilância: as mãos ociosas fazem o trabalho do Diabo, para usar a frase célebre. Tradução: se queremos ser recompensados pelas nossas ações terrenas, convém não jogar tempo fora, nem fazer esperar o Coutinho.

Além disso, a sociedade comercial e industrial que o protestantismo promoveu apenas reforçou a virtude da diligência. Como lembrava Max Weber no clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, não é possível cumprir encomendas, prazos ou contratos ignorando os ponteiros do relógio. E, claro, não é possível trabalhar na fábrica ou então no escritório sem critérios básicos de entrada e saída para os funcionários.

É por isso que os povos do norte levam a sério o relógio que têm no pulso. Quando viajamos para o sul, viajamos também para uma espécie de neopanteísmo em que o Sol passa a orientar as tropas e só existem três horários possíveis: manhã, tarde e noite. Um encontro “de manhã” significa algures entre as dez e o meio-dia. O conceito “de tarde” nunca começa antes das quatro. E quem combina um jantar sabe que ele oscila entre o crepúsculo e a alvorada.

Se a falta de pontualidade é um distúrbio, a pontualidade também pode ser um

Essa, pelo menos, era a teoria habitual. Porque agora há outra, filha deste tempo em que a medicalização da vida oferece todas as respostas. Leio no jornal francês Le Figaro que pessoas habitualmente relapsas com as horas podem sofrer de maleitas várias. O déficit de atenção está no topo da lista. Mas também há perturbações obsessivo-compulsivas e fobias várias que impedem o cidadão de sair de casa para cumprir horários. Sem falar de personalidades histriônicas, ou claramente narcísicas, que precisam da expectativa da plateia para uma entrada em grande. Como se fossem estrelas do pop na hora de dar concerto. Nessa última versão, sou eu que estou falhando por não aplaudir a diva quando ela chega. Mil desculpas. Da próxima vez, prometo levar flores.

Aliás, se a falta de pontualidade revela um distúrbio, não é de excluir que a minha pontualidade também seja um. Trauma de infância, baixa autoestima, gosto pelo masoquismo – quem sabe? Um dia desses, enquanto espero e me desespero numa esquina qualquer da cidade, ainda serei removido da calçada por dois enfermeiros. Tudo bem, estou pronto para o encontro. Só espero que eles sejam pontuais.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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