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Cena da série “The Walking Dead”
Cena da série “The Walking Dead”| Foto: Divulgação

O ano caminha para o fim. A década também. E os nostálgicos, olhando para trás, procuram resumir os últimos dez anos com frases de efeito. Não sou indiferente ao esporte. Mas, nessa matéria, concordo com Ross Douthat, uma das últimas cabeças pensantes do New York Times: não é possível olhar para a segunda década do século 21 e esquecer as duas décadas anteriores.

Segundo Douthat, esses 30 anos podem ser entendidos como uma peça em três atos: no primeiro ato, temos a húbris, a confiança excessiva que adveio com a tese do fim da história e do triunfo da ordem liberal. No segundo ato, quando dois aviões destruíram as Torres Gêmeas em Nova York, experimentamos a queda dessa confiança (a nêmesis). A década que amanhã termina foi simplesmente de desilusão, afirma Douthat, embora eu talvez fosse mais dramático: depois da confiança e da queda, a sensação é de tragédia mesmo. E um dos métodos de aferir essa involução passa pelas séries de televisão.

Brinco? Não brinco. Anos atrás, um amigo erudito explicava-me que a melhor forma de compreender a década de 1990 implicava olhar para os seriados que fizeram sucesso. Tinha razão e os nomes dizem tudo: Beverly Hills, 90210 (no Brasil, Barrados no Baile), Seinfeld, Friends, Frasier. O que as une? O humor, sim, mas também a vida como ela é: as pequenas alegrias e tristezas de gente banal, cultivando os seus amores e desamores em paz e sossego.

Depois do 11 de Setembro, um sentimento de angústia, de ansiedade, de incerteza começou a visitar-nos no prime time

Quando assisto a Seinfeld ou a Frasier, o que acontece a um ritmo regular (só o Sherlock Holmes de Jeremy Brett rivaliza com elas), sinto o mesmo que Evelyn Waugh quando relembrava a Inglaterra dos anos 1920: um tempo arcádico, sem nenhuma sombra a encobri-lo. Na virada do milênio, tudo mudou. Foi aquela manhã em Nova York e o terrorismo islâmico a emergir no horizonte. Foram duas guerras – Afeganistão, Iraque – e nenhuma arma de destruição maciça para mostrar. Elementar, meu caro Watson: as armas de destruição maciça não estavam nas arábias. Estavam dentro de portas, nos desvarios dos bancos e da especulação financeira, como soubemos em 2007 e 2008.

A televisão não ficou indiferente ao espírito do tempo. Um sentimento de angústia, de ansiedade, de incerteza começou a visitar-nos no prime time. Chegaram Os Sopranos, A Sete Palmos, The Wire, 24 Horas. E até a comédia perdeu a gentileza de Frasier ou o surrealismo de Seinfeld. O humor tornou-se mais seco (South Park), mais embaraçoso (The Office), mais cruel (Arrested Development). Existe até um título que resume bem a ducha fria desse período: Curb Your Enthusiasm.

E a década de 2010 que amanhã termina? A angústia deu lugar a um sentimento iminente de catástrofe, como se alguém tivesse subitamente apagado as luzes e um abismo tivesse aberto sob os nossos pés. Será que a democracia liberal vai sobreviver à rebelião das massas? Será que vem aí uma nova “guerra fria” entre os Estados Unidos e a China? Haverá planeta para os nossos filhos e netos? E o terrorismo? Como foi que ele abandonou o seu habitat natural – África e Oriente Médio – para se instalar no coração da Europa?

Nada do que tínhamos como seguro e certo – a Terra é redonda, as vacinas são importantes, a privacidade não tem preço – parece agora seguro e certo. Tudo é fluido. Até o gênero. A convulsão e a subversão da década renderam boas e terríveis séries: histórias em que o declínio é literal (Mad Men), inexplicável (The Leftovers), épico (Game of Thrones), selvático (The Walking Dead), distópico (Black Mirror) ou até autodestrutivo (Breaking Bad). Será que estamos sendo realistas ou paranoicos?

Como é evidente, a resposta a essa pergunta será dada na década que agora começa. Mas eu, que não sou famoso pelo meu otimismo, aposto na palavra “talvez”. Talvez os populismos do momento percam o seu combustível assim que as promessas dos vários messias sejam derrotadas pela realidade. Talvez o planeta resista às hipóteses científicas mais extremas assim que a evolução técnica o permita. Talvez a selva epistemológica e moral da internet seja domada assim que a educação e a lei chegarem a esse novo faroeste.

E talvez as séries de tevê possam expressar um certo sentido de alívio e de espanto pelo simples fato de ainda estarmos vivos. Que o mesmo é dizer: Twin Peaks encontra Mr. Bean e vão os dois tomar uma cerveja no bar do Cheers. Não é o fim do mundo.

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