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A chanceler alemã Angela Merkel tira sua máscara antes de videoconferência com governadores sobre medidas de combate ao coronavírus, 10 de fevereiro
A chanceler alemã Angela Merkel tira sua máscara antes de videoconferência com governadores sobre medidas de combate ao coronavírus, em 10 de fevereiro de 2021.| Foto: Markus Schreiber/Pool/AFP

Amigos brasileiros se desesperam com esse vírus. Tento afastar a tristeza deles com a minha. A União Europeia não é muito diferente, explico, citando gráficos com meu ar doutoral. O Brasil tem 1.377 mortos por milhão de habitantes? A União Europeia tem 1.323. E, se ficarmos por Portugal, a cifra sobe para os 1.643.

Além disso, se a competência de Jair Bolsonaro dispensa comentários, que dizer da competência dos líderes europeus? Não, não é apenas a compra de vacinas que foi lenta, tardia e, como se vê agora, de uma incompetência bíblica: o Reino Unido pós-Brexit já inoculou 40% da população; os países europeus andam nos 10%. Alguém se admira que a Alemanha, rompendo com o consenso, já ameace comprar sozinha a vacina russa?

Quando 19 países europeus são liderados por hipocondríacos, isso pode ser tão letal como ter um Bolsonaro ao leme

Meu ponto é mais básico – e mais recente: na passada semana, 19 países europeus suspenderam a vacina da AstraZeneca/Oxford, mesmo depois de a Agência Europeia do Medicamento ter aprovado o fármaco sem reservas. Pergunta óbvia: o que leva 19 países europeus, em plena terceira vaga da pandemia e com índices de vacinação miseráveis, a suspender uma das vacinas disponíveis no continente? Resposta menos óbvia: uns 25 casos de tromboembolismo venoso que podem, ou não, estar relacionados com a vacina.

Na Europa, 18 milhões de pessoas já receberam a vacina anglo-sueca. Esses 25 casos só são problemáticos para hipocondríacos como eu. E quando 19 países europeus são liderados por hipocondríacos, isso pode ser tão letal como ter um Bolsonaro ao leme. Sobretudo quando a resistência à vacinação aumentou.

Estamos no mesmo barco, amigos, eis o ponto. Podemos comparar estatísticas, país a país. Mas é possível olhar para o globo e divisar três times com três resultados distintos: a Europa, a América do Norte e a América do Sul foram fracassos na resposta pandêmica; a África subsaariana e o sul da Ásia tiveram muitas infecções, mas poucos mortos; e depois encontramos a Oceania e o Sudeste Asiático, que têm razões para celebrar. Como explicar essas diferenças?

O jornalista David Wallace-Wells, que apresenta esse pódio em ensaio notável para a New York Magazine, revisita explicações clássicas: fator sorte (a preponderância de grandes disseminadores é variável); demografia (países mais jovens têm menos mortes); geografia (as ilhas têm vantagens óbvias); o clima (o vírus não gosta da umidade); e a exposição regular a patógenos (a África se deu melhor por experiência no assunto).

Mas existe uma explicação suplementar a ser considerada: a rapidez com que diferentes governos reagiram à pandemia. Isso foi mais importante do que a qualidade das lideranças políticas (Angela Merkel não evitou os estragos), a confiança social (a Suécia também não) ou até a capacidade financeira dos governos (não foi por falta de dinheiro que os Estados Unidos falharam). E, nesse quesito, a Europa, a América do Norte e a América do Sul arrastaram os pés na hora decisiva.

No caso do Brasil, o negacionismo presidencial foi a receita para o desastre. Mas existe um outro tipo de negacionismo – a relutância em tomar medidas enquanto não existirem certezas científicas absolutas. Foi isso que levou muitos Estados ocidentais a adiar confinamentos que poderiam ter sido curtos e decisivos na fase inicial – qual será a eficácia? qual o prejuízo? onde está o consenso? – até esses confinamentos se transformarem em modos de vida eternos quando a pandemia já estava fora de controle.

No Brasil, o negacionismo presidencial foi a receita para o desastre. Mas existe um outro tipo de negacionismo – a relutância em tomar medidas enquanto não existirem certezas científicas absolutas

Instintivamente, sei que resisto a essa explicação: a prudência, em regra, me parece mais aconselhável do que uma urgência às cegas. Mas admito que, em situações atípicas, o medo de errar pode ser mais danoso do que o erro propriamente dito. Especialmente quando as lideranças políticas de hoje oscilam entre a irresponsabilidade populista (Bolsonaro) e a responsabilidade paralisante (os governos europeus quando confrontados com o vírus). É por isso que os últimos tendem a resguardar-se covardemente nos especialistas – para não terem de assumir nenhuma responsabilidade pelos seus atos.

É uma tentação fatal: o tempo da política pode não ser o mesmo que o tempo do debate (e do método) científico. Há uma margem de contingência e risco que é inevitavelmente humana e solitária.

Em 1940, com a França derrotada e a Inglaterra sozinha, os especialistas não podiam prometer a Churchill uma vitória sobre os nazistas. Muitos deles, aliás, aconselharam-no a negociar a paz com Hitler. O que teria sido da Europa se a ausência de certezas o tivesse paralisado?

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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