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Alena Kononova, de 18 anos, viu a mãe ser baleada e seu prédio ser bombardeado antes de ambas deixarem Mariupol: “Eu pensava diariamente que seria o último dia da minha vida”
Alena Kononova, de 18 anos, viu a mãe ser baleada e seu prédio ser bombardeado antes de ambas deixarem Mariupol: “Eu pensava diariamente que seria o último dia da minha vida”| Foto: Luis Kawaguti

Sem eletricidade ou gás, os moradores da cidade de Mariupol, no sudeste da Ucrânia, têm que sair às ruas para cozinhar em fogueiras, mas isso os deixa vulneráveis não só aos bombardeios.

“Quando os soldados russos veem alguém na rua, atiram nas pernas ou nos braços. Vi isso acontecer quatro vezes e uma delas foi com a minha mãe”, disse a jovem Alena Kononova, de 18 anos, em entrevista a este colunista em Zaporizhzhia.

“Nós saímos do nosso prédio para cozinhar e eles chegaram atirando com seus fuzis. Acertaram-na no ombro direito. Nós corremos para dentro e eles vieram atrás. Entraram no nosso apartamento e começaram a perguntar se apoiávamos a Rússia ou a Ucrânia, e a minha mãe sangrando. Eu estava com um medo terrível”, disse Alena.

Segundo ela, os soldados reviraram o apartamento, pegaram alguns dos pertences da família e acabaram indo embora. Foi depois desse episódio, ocorrido há duas semanas, que as duas decidiram se arriscar na perigosa jornada de fuga de Mariupol.

A cidade vem sendo um dos principais objetivos militares dos russos desde o início da guerra, em 24 de fevereiro. Mariupol teve mais de 80% de seus edifícios atingidos nos confrontos e mais de 300 mil dos 400 mil habitantes fugiram. Hoje, a cidade está nas mãos dos russos, exceto por uma área de 11 quilômetros quadrados, onde cerca de 2 mil combatentes e 2 mil civis resistem no complexo siderúrgico de Azovstal.

Nesta semana, o secretário-geral da ONU, António Guterres, se reuniu com o presidente russo, Vladimir Putin, e depois com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, para tentar costurar um acordo e reabrir um corredor humanitário para possibilitar a saída de civis da cidade.

Enquanto isso não se concretiza, muitos moradores tentam deixar a cidade por conta própria, em uma perigosa jornada de 200 quilômetros até a cidade de Zaporizhzhia - percurso que pode levar dias.

Alena e sua mãe deixaram a cidade em um dos últimos corredores que foram abertos. “No dia em que estávamos saindo para pegar um ônibus, nosso prédio foi bombardeado. Nós estávamos saindo do apartamento quando a bomba caiu no quinto andar, mas do lado oposto de onde nós morávamos”, disse Alena.

Ela perdeu a consciência e foi carregada pela mãe e por vizinhos até um ônibus de refugiados. Só acordou quando o ônibus já começava a deixar a cidade. “Foi horrível. Passamos por um prédio que havia desmoronado e tinha umas 20 pessoas mortas em volta”, afirmou.

“A viagem demorou 12 horas, passamos por 35 postos de controle e, em cada um, todas as pessoas eram revistadas. No último, os russos disseram que se não voltássemos para consertar a cidade de Mariupol, eles também destruiriam Zaporizhzhia.”

“Desde que os ataques a Mariupol começaram, eu pensava diariamente que aquele seria o último dia da minha vida”, disse.

Mas os corredores humanitários estão virando raridade, pois a Rússia e a Ucrânia não entram em acordo sobre o destino dos defensores de Azovstal. Há mais de uma semana não partem ônibus de Mariupol para Zaporizhzhia. Isso tem feito muitas pessoas tentarem a sorte em seus próprios carros. O maior perigo é que elas têm que passar pela “terra de ninguém” entre os exércitos russo e ucraniano - sob o perigo constante de serem bombardeadas.

Quando estive nesta semana em uma vila localizada na zona zero, a chamada “terra de ninguém”, pude constatar o perigo da viagem. As tropas russas avançam a cada dia, bombardeando as linhas de trincheiras mais afastadas de Zaporizhzia. Na medida em que os ucranianos vão perdendo essas posições, recuam para posições mais fortificadas - com trincheiras repletas de tanques de batalha e artilharia - posicionadas mais perto da cidade.

A artilharia russa bombardeou o carro no qual eu me deslocava com colegas jornalistas justamente quando passávamos próximo a uma das linhas mais afastadas de trincheiras. Nosso carro estava devidamente identificado como imprensa, mas mesmo assim fomos bombardeados junto com outros três carros civis. Felizmente, ninguém se feriu. É esse tipo de ataque que ameaça as vidas dos civis que tentam sair do território ocupado pelos russos. Mesmo carros identificados com panos brancos ou a palavra “crianças" em russo escrito na lataria têm sido bombardeados.

Olga Karnovich, de 52 anos, fez a jornada nesta semana. Ela estava acompanhada da filha e de outros seis conhecidos. “Estávamos em dois carros e não pegamos a estrada direto para Zaporizhzhia. Fomos primeiro para Berdiansk (também dominada pelos russos), ficamos uma noite lá e depois viemos para o lado ucraniano. Levamos três dias para chegar”, disse ela.

Olga Karnovich saiu da cidade por conta própria, acompanhada da filha e de outros seis conhecidos
Olga Karnovich saiu da cidade por conta própria, acompanhada da filha e de outros seis conhecidos

“Tirando os soldados de Azovstal, eu acho que a maior parte das pessoas que ainda está em Mariupol quer ficar com a Rússia, é uma pequena parte da população”, disse ela. “A Ucrânia é a minha terra natal, por isso não precisei decidir, eu sabia que precisava ir para a Ucrânia livre, não ficar no território ocupado”, afirmou.

O voluntário Denis Ostapenko é morador de Mariupol e ajudou a organizar inúmeros comboios não oficiais para retirar moradores da cidade. Mas ele disse que a situação se deteriorou muito na cidade e, após participar de um comboio com mais de cem carros na última semana, decidiu não retornar a Mariupol.

Denis Ostapenko ajudou a organizar vários comboios não oficiais para retirar moradores de Mariupol, mas desistiu diante do perigo crescente
Denis Ostapenko ajudou a organizar vários comboios não oficiais para retirar moradores de Mariupol, mas desistiu diante do perigo crescente

“Quando eu estava levando suprimentos para um hospital, vi uma mulher com um bebê de cinco dias, os dois tinham sido mortos por uma bomba muito grande que caiu perto desse hospital. Os corpos estavam no chão com ferimentos de estilhaços”, disse.

“Eu via sempre explosões à minha direita e à minha esquerda, até me acostumei, mas decidi sair de Mariupol porque estava muito perigoso e temo pela minha família”, disse ele.

Eu não domino os idiomas russo e ucraniano, mas pude notar que todos os moradores de Mariupol que entrevistei se comunicam mais com a língua russa do que em ucraniano. Os laços culturais com Moscou são grandes.

Questionei muitos refugiados sobre o que achavam de uma das justificativas do presidente Vladimir Putin para a guerra: a libertação de russos étnicos que moram na região leste do país do domínio do governo ucraniano.

Não foi possível falar com quem quis ficar em Mariupol, mas todos os que fugiram para as cidades ucranianas e falaram comigo em Zaporizhzhia afirmaram que o argumento do Kremlin é uma mentira.

“Eles liberaram a gente só das nossas relações com nossos vizinhos, das nossas famílias, das nossas casas, não só em Mariupol, mas em todo o país. Os russos mentem o tempo todo”, disse Ostapenko.

“É preciso destruir o sistema político da Rússia, porque ele não é fascismo, não é nazismo, é ‘russismo’, um novo 'ismo', por isso precisamos de ajuda de todo o mundo. Não vejo a hora de ver Mariupol livre e começar a reconstruí-la”, disse.

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