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Refugiados de Mariupol abrigados temporariamente em um ginásio escolar em Taganrog, na região russa de Rostov
Refugiados de Mariupol abrigados temporariamente em um ginásio escolar em Taganrog, na região russa de Rostov| Foto: EFE/EPA/ARKADY BUDNITSKY

Autoridades da Ucrânia estão acusando a Rússia de forçar centenas de milhares de cidadãos ucranianos a emigrar para o interior da Rússia. A ação vem sendo equiparada na Ucrânia aos movimentos forçados de migração promovidos na era soviética.

Segundo Liudmyla Denisova, comissária de direitos humanos do Parlamento ucraniano, ainda não é possível dizer com precisão quantos ucranianos foram forçados a entrar na Rússia. Ela se baseou em uma estatística do Kremlin que diz que 400 mil ucranianos cruzaram a fronteira, sendo 84 mil deles crianças.

Moscou, por sua vez, afirma que essas pessoas decidiram espontaneamente procurar abrigo no lado russo da fronteira. Para a Rússia, eles foram resgatados - e não forçados a emigrar. Mas nenhuma fonte independente confirmou os números.

O governo de Vladimir Putin alega que um dos objetivos da guerra na Ucrânia é proteger um contingente de russos étnicos que estariam sofrendo abusos de direitos humanos por parte do governo de Volodymyr Zelensky.

Nesta quinta-feira (24), a Rússia divulgou imagens de seus soldados distribuindo comida e mantimentos para a população de Mariupol, que está sitiada e enfrentando falta de água, comida e energia elétrica.

Até o fechamento desta coluna, o Kremlin não havia se posicionado oficialmente sobre a acusação ucraniana de emigração forçada de seus cidadãos.

Apesar de ter baseado sua acusação em uma estatística russa, o governo ucraniano afirmou ter evidências concretas de que 15 mil pessoas foram detidas nas cidades ucranianas de Mariupol, Volnovakha (perto de Mariupol) e Stanytsia Luhanska (em Lugansk) e depois obrigadas a emigrar para a Rússia.

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De acordo com a parlamentar Denisova, o governo ucraniano criou um telefone ao estilo disque-denúncia para apurar crimes de guerra. Por ele, as autoridades teriam recebido milhares de denúncias sobre emigração forçada. Muitos denunciantes teriam apresentado como evidência documentos dos parentes forçados a emigrar.

Muitos denunciantes disseram ter conversado com os familiares por telefone. Eles teriam afirmado que estavam sendo levados para localizações desconhecidas no interior da Rússia, segundo a parlamentar.

Segundo as denúncias, as pessoas foram obrigadas por militares russos a sair de suas casas e embarcar em ônibus. Foram então levadas para a cidade russa de Taganrog ou para territórios ocupados em Lugansk - onde estariam funcionando centros de triagem de refugiados.

A partir desses centros, ao menos 6 mil ucranianos já teriam sido levados para as cidades de Tomsk e Omsk, situadas na região central da Rússia, cerca de 3 mil quilômetros a leste de Moscou (e a 4 mil quilômetros da Ucrânia).

O governo ucraniano também diz ter obtido evidências de que parte dos cidadãos forçados a entrar na Rússia teria sido levada para Sakhalin, uma ilha russa no Pacífico que tem parte de seu território disputado pelo Japão.

Denisova afirmou que a Justiça ucraniana está investigando todas as denúncias e já teria recolhido evidências de que essas pessoas tiveram seus passaportes apreendidos - supostamente para dificultar sua saída da Rússia.

A acusação ucraniana ocorre em meio a uma guerra informacional entre Ucrânia e Rússia.

Se comprovada, a emigração forçada de grandes contingentes de ucranianos seria a repetição de uma prática usada na era soviética - especialmente no governo de Josef Stálin.

Os objetivos das migrações forçadas eram combater minorias étnicas ou grupos que se opunham ao governo ou também enfraquecer identidades nacionais e fortalecer o coletivismo soviético.

Estima-se que mais de 3,5 milhões de pessoas de 50 diferentes nacionalidades foram deslocadas à força no território da então União Soviética. A maioria delas foi retirada do oeste da Rússia, parte do país situada no continente europeu, e depois levada para a parte asiática da nação.

A própria Ucrânia recebeu contingentes de russos e de minorias étnicas que hoje compõem parte de sua população, especialmente no leste do país. A estratégia da Rússia, segundo analistas, era diminuir o nacionalismo ucraniano.

As áreas onde a maioria desses contingentes se concentra ficam na região de Donbass, onde ficam as províncias separatistas de Donetsk e Lugansk, que foram tomadas por rebeldes financiados por Moscou em 2014.

Lá, muitas pessoas têm ascendência, identificação cultural e até familiares morando na Rússia. Mas isso não significa que toda a população da região queira ser “libertada” da Ucrânia, como afirma Moscou.

“Eu nasci e cresci em Lugansk e não me sentia uma russa, eu sempre me senti ucraniana. Eu falo russo, mas isso não significa que eu queira ir para a Rússia”, disse Zarina Mariarhyna, de 24 anos.

“Depois de me formar na escola, não pensava em fazer universidade na Rússia, somente na Ucrânia. Sempre ia em excursões para Kiev (capital ucraniana) e Lviv (oeste do país). Antes da guerra, eu achava que até éramos parecidos com os russos, mas agora tenho certeza de que somos 100% diferentes”, disse ela.

Não é possível dizer que a maioria dos ucranianos refugiados que entraram na Rússia durante a guerra - mais de 400 mil segundo Moscou e 270 mil segundo a ONU - agiram de forma forçada.

Muitos foram motivados por decisão pessoal e alguns influenciados pela propaganda. Segundo Mariarhyna, como Lugansk está isolada do resto da Ucrânia, os russos têm difundido a informação falsa de que Kiev já foi tomada e que não resta opção aos cidadãos a não ser se entregar.

“Soube que isso aconteceu com amigos meus, eles acreditam na propaganda porque ela é muito forte”, disse.

“Eu acredito no nosso povo, na alma forte e brava, mas quando você está no ponto mais quente do conflito, você não tem água, não tem comunicação e não pode saber como está a sua família, e os russos falam o tempo todo que o país já se rendeu… não há como culpá-los por cruzar a fronteira”, disse.

Refugiados como arma de guerra

Se comprovada, a prática da Rússia de forçar ucranianos a cruzar a fronteira poderá ser entendida como um crime de guerra.

As intenções da Rússia com a suposta ação não estão claras ainda. Alguns objetivos poderiam ser pressionar o governo ucraniano, ao fazer seus cidadãos “reféns”, preencher áreas menos povoadas da Rússia ou diminuir a resistência civil na Ucrânia.

Uma outra hipótese poderia ser criar pânico na população ucraniana - ação que tem potencial para aumentar o número de refugiados que se dirigem para a União Europeia.

Se isso se confirmar, não seria a primeira vez que a Rússia e seus aliados tentam provocar ondas de emigração para o bloco europeu, com o objetivo de sobrecarregá-lo e causar instabilidade política.

No ano passado, Belarus, aliada da Rússia, incentivou imigrantes do Oriente Médio a usar seu país para tentar cruzar a fronteira da Polônia.

Em teoria, a necessidade de recursos financeiros para oferecer moradia e serviços de saúde para os refugiados, aliada a uma crescente competição por empregos, poderia desagradar a opinião pública europeia e gerar crises internas - enfraquecendo a unidade do bloco.

Mas, por ora, a Europa - ao menos os países do leste - parece estar de braços abertos para os imigrantes ucranianos. Não é possível saber, porém, se essa disposição vai mudar ao longo de uma guerra que promete ser longa.

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