Redação

Manifesto e poesia no Teatro Novelas Curitibanas

Redação
14/07/2019 19:30
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Quem
já fez teatro – nem que tenha sido o da escola ou o da catequese – sabe: tem
aquela hora em que parece que tudo vai dar errado. Os atores esqueceram as
falas, a luz é treva e a sonoplastia beira os infernos. Alguém está sempre
distraído – e atrasa. Outro alguém não apareceu para os ensaios. Sem falar
naquela passagem que não funciona nem a pau.
A situação estava mais ou menos assim, semana passada, durante os ensaios do espetáculo A bala alojada na arte – uma das peças da Mostra Emergente, iniciativa cultural que vai movimentar o palco do Novelas Curitibanas (agora também Teatro Claudete Pereira Jorge) até meados de agosto. O evento – que está na terceira edição – reúne 12 coletivos artísticos afinados com as linguagens que deram de tirar a periferia do silêncio obsequioso. Além do rap, estão na programação as “batalhas” – com improvisos que transbordam manifestos – e os slams, competições poéticas em que lirismo, dor e protesto são colocados para bater no liquidificador.
A bala alojada na arte
faz parte desse pacote. A peça-manifesto – que estreou na quinta-feira – leva a
assinatura do paranaense Kenni Rogers, agitador cultural que nos últimos anos
tem se ocupado de encurtar as distâncias entre o Centro e a quebrada, como se
diz nesse meio. Promove mostras culturais em lugares onde, tudo indica, só chega
o último passageiro do último ônibus. Leva escritores de renome a associações
de moradores, para falar de literatura a quem usa menos crase e menos vírgula. Faz
teatro com os meninos da Chácara de 4 Pinheiros, em Mandirituba. Um dínamo.
O ator, diretor, performer, ativista é um homem pequeno, de poucos quilos, um rabo de cabelo louro que parece ter vida própria e uma barba tão comprida que o assemelha a um viking perdido nos trópicos. É todo afetos, um tipo que vende alegria e faz a gente se sentir meio em dívida com a humanidade. O Quixote nasceu na germânica cidade paranaense de Marechal Cândido Rondon e fez de Curitiba seu palco para a revolução estética e social. “Uma figura”, dizem. Existe um a.C e d.C Kenni, creiam.
Agora esse moço decidiu inverter um pouco o trânsito: traz a gurizada dos bairros distantes – sua trupe de atores, entre 11 e 19 anos, em média, que vive entre o Boqueirão e o Sítio Cercado – para uma das áreas nobres da cidade, o teatro Novelas Curitibanas, na Rua Carlos Cavalcanti. O Novelas é o berço de O Vampiro e a Polaquinha, de Adhemar Guerra, decalcada da obra de Dalton Trevisan, para citar um marco do espaço. A partir desta semana vai se tornar também o palco de gente como os adolescentes Serginho Smith, Mika e Handal. Cada um, na sua medida, compõe, toca violão. Ah, são influenciadores digitais. Procure por eles no YouTube e se escore na cadeira mais próxima para cair sentado. O clipe do Serginho deixa a gente arreado.
Um crítico rabugento diria que este é um espetáculo panfletário, datado e o escambau. Prefiro pensar que é oxigênio, em meio à atual ordem das coisas
Um ensaio sob a batuta de Kenni não deixa por menos. Ele é um faz-tudo. Orienta, abre sacolas com apetrechos, desperta emoções escondidas ao mesmo tempo em que desvia de um aspirador de pó ligado no mais forte e uma escada que insiste em permanecer no meio do palco. Como diz a música do Gonzaguinha, ele é uma pessoa se entregando. “Pessoal aí atrás. Tá todo mundo concentrado?” Não, mas de repente surge uma voz que diz: “Sabe a periferia, sabe a arte da rua...”. E outra entra com a estatística “um jovem negro é morto a cada 23 minutos... quebre padrões, superando a si próprio com suas ações”. Por fim, o eco da frase na maviosa voz de Renan Brandão, o Handal, 19 anos: “Seja quem você quiser...”
A bala alojada na arte
começa a ganhar forma. E só não conto o que o “tiro” tem a ver com o babado
para não dar spoiler. Um crítico
rabugento diria que é um espetáculo panfletário, datado e o escambau. Prefiro
pensar que é oxigênio, em meio à atual ordem das coisas – aumento da
desigualdade social, contingenciamentos imorais, estímulos a práticas grotescas
como o trabalho infantil. E só não digo mais para não acender vela para defunto
ruim. Melhor se deter na gurizada que forma uma meia lua, toda com o gestual
mínimo e irreverente dos MCs, enquanto um deles tira da garganta um sonoro “o
Bra-Bra-Brasil – você vai ver que a escravidão não acabou por aí... Vai tentar
me calar, mas a porra da minha voz vai ecoar...”
Quando tudo parece ser dito, vem uma voz da plateia. É da poeta veterana Nelly Amaral, vulgo Diva Ganjah, 36 anos, natural de Araucária, na Região Metropolitana. “O papel de plebeu que você recebeu, assinou e nem leu... Bora lutar periferia. Num mundo de morte não existe democracia...” Diva começou no rap aos 12 anos e tem carreira luminosa. “Sou velha”, brinca, ao se sentar no meio dos adolescentes para uma roda de conversa entre uma sessão de ensaios e outra. Sua folha corrida inclui ter atuado na ocupação das escolas estaduais, em 2016, e a presença em viradas culturais. “Sou invicta no slam”, avisa com bochechas rosadas, sobre nunca ter perdido uma competição. “Por que estou aqui? Ah, cara, por amor... Quero menos fome, menos frio, mais igualdade.”
As amigas Ana Júlia Karas, a Naju, 18 anos; e Arianne Leal, a Mary Jane, 16 anos, seguem no embalo de Diva. Repetem meio que em coro de jogral, como gostam, cabecinhas com molejo bom: “Não sonho em ser alguém, sonhamos alimentar alguém”. As gurias vivem no Boqueirão e na CIC, respectivamente, e batem ponto nas batalhas, que acontecem aos montes nas periferias. “Você conhece a batalha do Parigot?”, pergunta Handal, jovem classe média que cresceu entre a Água Verde e o Portão. O “Parigot”, de “Parigot de Souza”, é uma vila do Sítio Cercado, onde tudo acontece. Virou um segundo endereço de Handal. A família se divide em se gosta ou não da escolha que ele fez. “Descobri o rap graças a uma professora de Sociologia do Colégio Pedro Macedo”, conta.
Kenni Rogers é um faz-tudo. Como diz a música do Gonzaguinha, ele é uma pessoa se entregando
A história de Renan se soma na roda à de Miriã Karla, vulgo MC Mika, 14 anos, moradora do Novo Mundo. É uma espécie de show woman do slam. À revelia da pouca idade, manda bem em todas as funções do cardápio. Quando senta, pega o violão e canta, Kenni consegue descansar. Os ruídos cessam, a escada sai do meio do palco e o aspirador de pó para com a gritaria. Ela agradece os elogios. A palavra já está com Mateus Zagonel, vulgo Zago, 17 anos, que não esconde que o coração está entregue ao hip-hop. “Na quebrada que eu morava as coisas não deram muito certo. A poesia salvou a minha vida. O bagulho é de verdade”, avisa o morador da Vila Icaraí, no Uberaba. Zago, assim como Mika, já marcou presença em festivais e encontrou o apoio de estudiosos de literatura. É o que há de novo, reconhecem os doutos.
No rabo da conversa entra Vítor Bini, 16 anos, o Bini, morador da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros. Foi apresentado ao teatro por Kenni, há três anos. O adolescente que antes só tinha para contar suas pequenas histórias da vida em abrigos fala de literatura e da sua estreia nos palcos com a “experiência cênica” chamada , feita em parceria com outros 17 moradores de Quatro Pinheiros. Conta o que viveu, no que é atropelado pelo menino-prodígio Sérgio Silva Júnior, o Serginho Smith, 11 anos, o caçulinha da trupe. Morador do Jardim Gabinetto, entre a CIC e o São Braz, foi apresentado ao rap pelo pai. Cursa o sexto ano. Só posso dizer: “Guardem esse nome”.
Por fim, tem a palavra o Felipe Alves, 18 anos, natural de Ponta Grossa, nos Campos Gerais. Também tem histórias familiares para contar. Menos apoiado pelos seus que Serginho, venceu a resistência na base do verso cortante, como é de praxe. “O dia mais legal foi quando olhei para a plateia e vi meu pai me aplaudindo”, conta, em meio às memórias de anos atrás. Não esquece o dia em que assistiu a uma palestra de Kenni. Decidiu ali não esconder mais seu gosto pela escrita – e uma escrita que pede gesto, no palco, na rua. “Meu corpo é político”, avisa. Está dito.