José Carlos Fernandes

A Casa dos Pobres não se entrega

José Carlos Fernandes
26/07/2020 11:00
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Na madrugada do dia 9 para 10 de julho, a Casa dos Pobres São João Batista – no bairro Rebouças, em Curitiba – foi assaltada. “Uma limpa”, como se dizia. Nada de tão trágico acontecia ali desde 1991, quando um incêndio arruinou uma das sete edificações que formam o centro de acolhimento, albergagem e educação fundado em 1954.
O diretor da instituição
– o engenheiro civil Rafael Pussoli, 52 anos – ainda não contabilizou todos os
prejuízos. Basta abrir mais uma sala para se dar conta de que algo sumiu. Por
alto, em quatro horas de devassa, dois larápios levaram 200 cobertores de microfibras
– usados para o soninho das 102 crianças que frequentam o Centro Infantil São
João Batista, filhos e filhas de moradores da comunidade Vila das Torres, ali
ao lado. Some-se ao prejuízo, igualmente, 200 jogos de lençóis, 15 bicicletas,
os melhores brinquedos disponíveis e um sem número de panelas, talheres e fôrmas.
Por fim, 16 computadores e scanners. A creche está pelada.
“Nenhum armário deixou de
ser visitado”, resume Rafael, enquanto caminha pela propriedade de 2,9 mil
metros quadrados, apinhada de rampas que ligam as arquiteturas das mais
variadas. Vão das linhas getulistas e de austeridade hospitalar e conventual,
passando pelas modernas, com detalhes em azulejaria portuguesa e madeira. Na
contramão, sobram puxadinhos feitos às pressas e um amplo salão com cara de
loja, que por um curto período acolheu moradores em situação de rua.
Impressiona a quantidade
de finalidades da Casa dos Pobres – desenvolvidas ao longo de 66 anos de
atividades, completados há uma semana, logo depois do roubo. Além da creche –
cujas instalações, ainda que modestas, não devem em nada aos centros infantis
da prefeitura –, o “complexo” tem uma ala para acolher mães com filhos pequenos
e que tenham sofrido algum tipo de violência; quartos individuais para doentes
empobrecidos; alas destinadas a acompanhantes de pacientes do interior do
Paraná – e de outros estados – que venham a Curitiba para tratamentos em
hospitais como o das Clínicas e o Erasto Gaertner.
Mais. Há padaria, um
bazar de roupas tão multicolorido que mereceria ser palco de um ensaio
fotográfico; e a ala desativada do povo da rua – tudo isso emoldurado pela
produção de grafiteiros, convidados pela administração para ilustrar o ambiente.
No meio desse caleidoscópio emerge uma mangueira gigantesca, cujas raízes
atentam contra os pisos e ameaçam levar paredes a pique. “Cada vez que cai um
galho é como se tivesse desabado uma árvore na nossa cabeça”, brinca Pussoli
diante do ponto turístico do albergue. O outro é um “orelhão” do pátio, hoje
peça arqueológica.
À revelia de tantos
estímulos, a Casa dos Pobres São João Batista está a anos luz de ser um espaço
profilático – um prendado convento de freiras, um casarão dos filmes de James
Ivory. Há tantos corredores, atalhos e escadas ligando os prédios que é impossível
não imaginar que delícia seria jogar pique-esconde ali. Ou, ao contrário, prever
o pavor de cruzar aqueles corredores, sozinho, à noite, quando os forros de
madeira estalam. As pinturas das paredes são renovadas, mas no ritmo de obra
social – quando termina uma ala, a outra já descascou. E tem o chão, cedendo
alguns centímetros a cada ano, por força do solo arenoso e de banhado do
Rebouças “de baixo”, justo o que cresceu às margens do Rio Belém. Cada rodapé
que descola é um fio de cabelo branco na cabeça de Pussoli.
Filho de Ricardo Pussoli,
empresário lendário que, com pouquíssimos estudos formais, se tornou construtor
e tinha no currículo nada menos do que a execução da Rodoferroviária de Curitiba,
Rafael atazana os colegas da engenharia. Pede para que o ajudem a encontrar um
milagre em cimento armado, capaz de impedir o abrigo de afundar. O conjunto de
edificações em prol da caridade forma uma composição cubista. Suas inclinações
provocam vertigem, um perigo para os bêbados. Numa das alas, por exemplo, o
chão formou uma imensa barriga, como se “a coisa”, dos filmes trash de terror, estivesse sendo
gestada ali. Restou interditar a área, até segunda ordem.
Nem é preciso ser bom em
contas para desconfiar que a Casa dos Pobres São João Batista custa caro. As
contas não fecham – e não devem sair do vermelho tão cedo, depois do arrastão
que sofreu. Além da centena de crianças que fazem coro de choro por ali, o
local atende 40 meninos e meninas do ciclo básico – em contraturno de manhã e de
tarde. “No almoço, todos juntos”, frisa o diretor sobre a “vida selvagem” que
reina ao meio-dia, com tantas bocas para comer e o “zilhão” de regras da
Vigilância Sanitária a cumprir. Uma rampa depois, outra centena de pessoas
transita, essa formada por doentes – homens e mulheres vindos de outras cidades
para se tratar na capital. Chegam cada vez de mais longe – e até em expedições,
em especial depois que Curitiba parece ter roubado de Campinas, no interior de
São Paulo, o posto de referência em tratamento oftalmológico.
As historietas sobre como
o centro continua funcionando – contra tudo e contra todos, inclusive contra o
livro caixa – animam as rodinhas de conversa, em dias normais. Uma dessas
anedotas da vida como ela é se tornou um clássico. Faltavam R$ 2 mil para
fechar as contas do mês. No mesmo dia, um doador apareceu com um cheque de R$
1,7 mil. Outro com um de R$ 300, cravados, fechando o valor da dívida. “A mão
de Deus está aqui”, diz, repetidamente, Rafael. A São João Batista não joga a
toalha, mesmo com incêndio, assalto de larga escala, arranca-rabos com a
administração pública. É insano. A pandemia fechou as portas por ora, mas a
procura é intensa e os novos protocolos para garantir a abertura ocupam Rafael
e a administradora Liana Rauber, com quem divide o comando da nave.
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O caso de Rafael Pussoli
com a Casa dos Pobres é digno de um romance de cavalaria. Ou de um romance
propriamente dito. Era pouco mais do que um menino – tinha 19 anos – quando
virou voluntário da instituição. Em 1993, então um jovem adulto, se tornou
diretor e permanece no cargo há quase três décadas. “Já desisti de explicar o
que me move a ser voluntário”, avisa, ao admitir o espanto que sua dedicação
provoca. Em tese, a obra lhe consumiria duas horas por dia, restando um bocado
para o magistério superior, do qual tira seu sustento. A conta que lhe provoca
risos largos. Às vezes, as horas são consumidas em tarefas simples e infernais.
Dia desses, para convencer um pedreiro de que a inclinação de uma rampa deveria
garantir a subida tranquila de um cadeirante, gastou todos os nervos e a saliva
do estoque. Estranharam-se. “Procure outro”, ouviu do desaforado. A obra está
pela metade. Tem de pular fogueira a cada instante, sobretudo a da ignorância. Ao
todo, são pouco mais de 30 funcionários, muitos deles descrentes de que a Covid-19
de fato exista. Ao contar, o engenheiro arregala os grandes olhos para o céu.
Fala algo engraçado e pronto.
Pussoli é, como se diz
aqui em casa, um homem bom. Alegre, contagiante, religioso – um leitor de obras
místicas, como A imitação de Cristo
–, é capaz de segurar uma boa conversa com quer que seja. Tempera qualquer
prosa com suas “crônicas de portaria”. O saguão da Casa dos Pobres é para ele uma
espécie de portal da humanidade. Tudo pode acontecer naquele hall. Se a pessoa
é mesmo para o que nasce, Rafael nasceu para essas interlocuções com os
desvalidos que o procuram e com os homens e mulheres – não raro, anônimos – que
batem ali dispostos a dividir com quem padece. Nesse vaivém, fez grandes
amizades, a exemplo do arcebispo emérito dom Pedro Fedalto, 94 anos, com quem
mantém uma relação filial. “Minha primeira genuflexão pela manhã faço pela Casa
dos Pobres”, confidenciou-lhe Fedalto dia desses. Mais de uma vez o amigo
desembarcou na esquina da Rua Piquiri com a Brasílio Itiberê para abençoar o
centro de acolhida e livrá-lo da penúria.
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O encontro de Rafael Pussoli com o lado mais sombrio da vida se deu na infância. Acompanhava o pai na via-sacra por hospitais psiquiátricos, em busca de tratamento para o irmão Rui, que sofria de esquizofrenia severa. A trajetória lembra a do neuropsiquiatra britânico Oliver Sacks (1933-2015), autor de obras essenciais como Tempo de despertar e Um antropólogo em marte. Na polêmica autobiografia – Sempre em movimento –, Sacks confidencia que suas pesquisas nasceram da convivência intranquila com o irmão esquizofrênico. Ao buscar respostas para ajudar quem amava, ajudou a humanidade toda. Não e demais dizer que, à sua maneira, cada um que desfruta da hospitalidade da Casa dos Pobres é um pouco o irmão Rui, em busca de um lugar que o salvasse da doença. A propósito, a Casa dos Pobres foi fundada por Januário Alves de Souza, bilheteiro na Estação Rodoferroviária e pai de um jovem com deficiência intelectual. Conseguiu cada tijolo na base da doação de moedinhas e do gogó. Convencia os graúdos a abraçar a causa. Um dos episódios que ronda sua saga é que teria sido abordado por um viajante, que lhe pediu ajuda na rua. Em resposta, mostrou-lhe os bolsos vazios. Na manhã seguinte, soube da morte do sujeito em decorrência do frio. Reagiu. Passou a fazer campanhas e convenceu autoridades a financiar o abrigo. Em torno do local, outros e outras foram se agregando à confraria – inclusive Rafael, décadas depois. A vida tem dessas coisas.