
Coloquei na pilha de matérias de jornal “para guardar”, como se dizia nos bons tempos analógicos, um artigo da escritora, polemista e ativista negra Djamila Ribeiro, publicado na Folha de S. Paulo em inícios de novembro. O texto “Solidão institucional” traz um subtítulo – “gravata”, no jargão jornalístico – que equivale a um chute no ossinho da canela: “Será que já perguntaram quais eram os sonhos das tias da limpeza?”.
Sim, Djamila trata da condição das mulheres negras – menos escolhidas para casar, para participar, para falar e mais requisitadas para trabalhos modestos e forçados, que desgastam todas as engrenagens de seus corpos. Que negras e negros são maioria na faxina, na coleta do lixo e que não são chamados pelo nome – a exemplo da “tia da limpeza” – é uma questão de fundo que escapa a gente como os deputados federais Coronel Tadeu e Daniel Silveira, ambos do PSL, autores de comentários de cunho racista cujo teor não merecem ser replicados. Abriu-se essa porteira no instante em que o torturador Brilhante Ustra foi homenageado no Câmara – lembram? Teremos de acertar contas com o futuro por não termos subido nas tamancas contra esse disparate.
Quanto à sugestão de Djamila – saber o que querem as mulheres da limpeza –, vale uma vida. A proposta da “ouvidoria de sonhos” não chega a ser inédita. Faz bem mais de uma década, em visita ao Brasil, o sociólogo italiano Domenico De Masi – autor da utópica teoria do ócio criativo – descascou um repórter que o chamou de elitista. Devolveu o desaforo dizendo que o país daria um cavalinho-de-pau no próprio destino se cada um se interessasse em saber como vivem os porteiros do prédio em que moram. Quem sabe os ajudássemos a chegar à escola mais próxima ou mesmo que promovêssemos sua alfabetização, se fosse o caso. Seria uma revolução – e que não lhe enchessem o saco pedindo que fizesse o que é da nossa conta.
Num abrigo de Curitiba encontrei uma ex-doméstica que apanhou tanto da patroa que se tornou inválida
Faça o teste e pergunte qualquer coisa ao porteiro ou à zeladora – é de espantar mesmo os mais céticos. Rótulos caem. A gente descobre nessas conversas com a turma que nos serve a quantidade de informações que não chegam aos mais pobres – a existência de cotas nas universidades e o funcionamento do Enem, dentre elas. Descobre também que não são movidos pela apatia e acomodação, como muitos se antecipam em afirmar, lépidos em usar a ferramenta da meritocracia. A soma de tentativas que essas pessoas fazem para driblar as engrenagens, que não lhes dão moleza, tinha de virar estatística, para bem da verdade.
Exemplos? Não faz muito tempo veio à baila a página “Eu, empregada doméstica” – uma espécie de subproduto inspirado no genial Museu da Pessoa, cujo acervo é o depoimento de anônimos de tudo que é casta. Mulheres que um dia trabalharam em casa de família – expressão das antigas – foram estimuladas a contar como era a rotina entre a arrumação das camas, a preparação do almoço e, não raro, as “passadas de mão” – um clássico da Casa Grande & Senzala. É de morrer de vergonha. Muitas criadas esperaram a família almoçar, para só depois desfrutar dos restos da mesa. Não raro, comiam sentadas no degrau da cozinha. Sós – e agradecidas, como achavam justo os algozes.
Nas lides jornalísticas, colhi algumas dessas histórias – e posso assegurar que não foram aumentadas, com o intuito de fazer chorar, dar dó ou angariar esmolas. Não se trata de depoimentos intencionais, mas de relatos captados em meio a pautas sobre outros assuntos. Num abrigo de Curitiba encontrei uma ex-doméstica que apanhou tanto da patroa – debaixo da cumplicidade dos filhos adultos e estudados da dona da casa – que se tornou inválida. Uma Blanche Dubois de baixa renda, dependente da caridade de estranhos. Um dia, fugiu e passou a viver na rua, o que lhe parecia muito mais confortável. Conheci-a perto de um final feliz, acolhida por gente boa. Não maldisse a vida nem esboçou ressentimentos.
Noutra ocasião, durante uma entrevista com uma assistente social de formação elevada – referência em habitação –, escutei da mãe dela, na hora do cafezinho, as sevícias que havia passado numa mansão do Jardim Social. Os pedaços de carne ali eram contados – e sempre sobrava um, de propósito. Não era destinado à empregada, que o tinha cortado, temperado e fritado, mas ao cachorro. Dog, dog, dog... Tempos depois a procurei, em busca de uma matéria para apimentar o debate do PEC das Domésticas – e dessa vez preferiu o silêncio. Entendi. Quem, afinal, gosta de lembrar dos muitos anos em que viu o bife, dela por direito, ser atirado pela janela rumo à goela do auau, numa cena tão cruel que nem Eça de Queiroz a teria imaginado?
Tenho no acervo de relatos, ainda, visitas à Casa Santa Zita, no Uberaba, abrigo de mulheres que envelheceram como empregadas domésticas e que perderam os próprios vínculos familiares. Outrora “moças do interior” viram-se descartadas assim que suas costas arruinadas as impediam de lavar camisas brancas na mão ou de esfregar a calçada com a fúria da vassalagem do Castelo de Versalhes. Para não dizer que não falei das flores, uma trupe de mulheres ricas salvou as zitinhas, como são chamadas, de verem a casa fechar, por falta de recursos.
De todas as narrativas, a mais cinematográfica é a de uma ex-doméstica que se tornou minha amiga para todo o sempre. O que conta tem contornos de fábula brasileira – e a admiro por ter saído do papel de figurante para o de atriz principal. Merecia uma ponta no delicioso filme Domésticas, de Fernando Meirelles e Nando Olival. Oriunda do Centrão do Paraná, ela comeu o pão amassado pelo diabo numa residência na qual foi contratada. Os maus-tratos envolviam, sobretudo, a sonegação de alimentos, em escala épica. Aguentou o quanto pôde, até pedir demissão e se empregar, por décadas, numa instituição religiosa – local onde encontrou o respeito que procurava.
O “falar de si”, o “depor”, expressa uma catarse necessária, uma imposição para peitar o estranho século 21
Numa ocasião, procurou a ex-patroa e a convidou para um café, sábado à tarde, para se empanturrarem de açúcar, em nome dos bons tempos. Para surpresa, o convite foi aceito. Tudo o que de melhor havia na dispensa aterrissou na mesa. O serviço de cozinha mobilizou irmãs, cunhadas e simpatizantes. Ao término, com a dona ainda estalando a bochecha, depois do último brigadeiro, seguido de mais uma fatia de cuca de banana – especialidade da anfitriã –, a ex-empregada lhe soltou os cachorros. Declamou, solfejou e berrou todas as humilhações que sofreu. Protestou de forma intestina que não se nega comida a ninguém – um crime lesa-humanidade. Foi seu Bacurau.
OK. Djamila Ribeiro fala de sonhos e não de desaforos. Melhor encontrar meio termo na palavra “depoimento”, na qual cabem os pianíssimos e os fortíssimos presentes no ato de contar uma história de vida. De uma década para cá, pode-se dizer que os depoimentos viraram um gênero jornalístico e literário, tamanha sua emergência. Renderam, inclusive, um Nobel à bielo-russa Svetlana Aleksiévitch – autora de Vozes de Tchernóbil, A guerra não tem rosto de mulher e O fim do homem soviético, entre outros. A autora elevou uma prática que mais parecia uma antessala da entrevista à categoria de grande arte. Svetlana “costura” as falas, recolhidas em repetidas vezes, até que superem a repetição mecânica, o clichê e a banalidade. A técnica se assemelha a uma escavação psicanalítica, mas sobretudo estímulo ético, estético e erótico a provar o sabor da coragem.
É fato que se pode apontar fragilidades nesse movimento. Depoimentos ao vento correm o risco de virar vitimização, viagem ao redor do umbigo, supervalorização da própria biografia – numa fatal perda de escala entre a nossa história e a história coletiva. Mas tudo indica que o “falar de si”, o “depor”, expressa uma catarse necessária, uma imposição para peitar o estranho século 21. A ensaísta argentina Beatriz Sarlo chama o fenômeno de “guinada subjetiva”.
Em vez de projetarmos o que vivemos nos personagens da literatura, do cinema, da mitologia, de modo que eles nos ajudem a mediar conflitos internos, migramos para o centro da cena, afirmando a nossa própria existência como medida de todas as coisas. Grosso modo, mais e mais gente toma a palavra e se coloca na posição de “subjetivistas” do naipe da rainha da chanchada Dercy Gonçalves, da madrinha Hebe Camargo ou da esfinge Elza Soares – para citar três “depoentes” que habitam o imaginário brasileiro, pela ênfase com que falaram e falam de si. Pode gerar distorções. Mas sobretudo, tomar a palavra, com força, tende a demarcar territórios. A voz, na primeira pessoa, exige marcos humanitários capazes de conter tiranias. Fora com elas. Nunca mais bifes atirados aos cães.
-
Agro aposta em emenda para aumentar indenizações e dificultar demarcações de terras indígenas
-
Acidentes custam o dobro do que o país investe em rodovias
-
Como a oposição vai tentar barrar no Senado a indicação de Dino ao STF
-
Ministério de Dino recebe “premiação” de órgão com menor transparência em 2023
Empresário que ficou conhecido como “homem da rampa” segue preso como terrorista
Advogado consegue absolver clientes de acusação de crimes do 8 de janeiro
Corretor de seguros é condenado a 17 anos de prisão, sem ser ouvido pelo STF
Estudante de Medicina da USP ficou 7 meses presa por ter rezado no Senado