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A era do depoimento – ou os bifes e os cães
| Foto: Felipe Lima

Coloquei na pilha de matérias de jornal “para guardar”, como se dizia nos bons tempos analógicos, um artigo da escritora, polemista e ativista negra Djamila Ribeiro, publicado na Folha de S. Paulo em inícios de novembro. O texto “Solidão institucional” traz um subtítulo – “gravata”, no jargão jornalístico – que equivale a um chute no ossinho da canela: “Será que já perguntaram quais eram os sonhos das tias da limpeza?”.

Sim, Djamila trata da condição das mulheres negras – menos escolhidas para casar, para participar, para falar e mais requisitadas para trabalhos modestos e forçados, que desgastam todas as engrenagens de seus corpos. Que negras e negros são maioria na faxina, na coleta do lixo e que não são chamados pelo nome – a exemplo da “tia da limpeza” – é uma questão de fundo que escapa a gente como os deputados federais Coronel Tadeu e Daniel Silveira, ambos do PSL, autores de comentários de cunho racista cujo teor não merecem ser replicados. Abriu-se essa porteira no instante em que o torturador Brilhante Ustra foi homenageado no Câmara – lembram? Teremos de acertar contas com o futuro por não termos subido nas tamancas contra esse disparate.

Quanto à sugestão de Djamila – saber o que querem as mulheres da limpeza –, vale uma vida. A proposta da “ouvidoria de sonhos” não chega a ser inédita. Faz bem mais de uma década, em visita ao Brasil, o sociólogo italiano Domenico De Masi – autor da utópica teoria do ócio criativo – descascou um repórter que o chamou de elitista. Devolveu o desaforo dizendo que o país daria um cavalinho-de-pau no próprio destino se cada um se interessasse em saber como vivem os porteiros do prédio em que moram. Quem sabe os ajudássemos a chegar à escola mais próxima ou mesmo que promovêssemos sua alfabetização, se fosse o caso. Seria uma revolução – e que não lhe enchessem o saco pedindo que fizesse o que é da nossa conta.

Num abrigo de Curitiba encontrei uma ex-doméstica que apanhou tanto da patroa que se tornou inválida

Faça o teste e pergunte qualquer coisa ao porteiro ou à zeladora – é de espantar mesmo os mais céticos. Rótulos caem. A gente descobre nessas conversas com a turma que nos serve a quantidade de informações que não chegam aos mais pobres – a existência de cotas nas universidades e o funcionamento do Enem, dentre elas. Descobre também que não são movidos pela apatia e acomodação, como muitos se antecipam em afirmar, lépidos em usar a ferramenta da meritocracia. A soma de tentativas que essas pessoas fazem para driblar as engrenagens, que não lhes dão moleza, tinha de virar estatística, para bem da verdade.

Exemplos? Não faz muito tempo veio à baila a página “Eu, empregada doméstica” – uma espécie de subproduto inspirado no genial Museu da Pessoa, cujo acervo é o depoimento de anônimos de tudo que é casta. Mulheres que um dia trabalharam em casa de família – expressão das antigas – foram estimuladas a contar como era a rotina entre a arrumação das camas, a preparação do almoço e, não raro, as “passadas de mão” – um clássico da Casa Grande & Senzala. É de morrer de vergonha. Muitas criadas esperaram a família almoçar, para só depois desfrutar dos restos da mesa. Não raro, comiam sentadas no degrau da cozinha. Sós – e agradecidas, como achavam justo os algozes.

Nas lides jornalísticas, colhi algumas dessas histórias – e posso assegurar que não foram aumentadas, com o intuito de fazer chorar, dar dó ou angariar esmolas. Não se trata de depoimentos intencionais, mas de relatos captados em meio a pautas sobre outros assuntos. Num abrigo de Curitiba encontrei uma ex-doméstica que apanhou tanto da patroa – debaixo da cumplicidade dos filhos adultos e estudados da dona da casa – que se tornou inválida. Uma Blanche Dubois de baixa renda, dependente da caridade de estranhos. Um dia, fugiu e passou a viver na rua, o que lhe parecia muito mais confortável. Conheci-a perto de um final feliz, acolhida por gente boa. Não maldisse a vida nem esboçou ressentimentos.

Noutra ocasião, durante uma entrevista com uma assistente social de formação elevada – referência em habitação –, escutei da mãe dela, na hora do cafezinho, as sevícias que havia passado numa mansão do Jardim Social. Os pedaços de carne ali eram contados – e sempre sobrava um, de propósito. Não era destinado à empregada, que o tinha cortado, temperado e fritado, mas ao cachorro. Dog, dog, dog... Tempos depois a procurei, em busca de uma matéria para apimentar o debate do PEC das Domésticas – e dessa vez preferiu o silêncio. Entendi. Quem, afinal, gosta de lembrar dos muitos anos em que viu o bife, dela por direito, ser atirado pela janela rumo à goela do auau, numa cena tão cruel que nem Eça de Queiroz a teria imaginado?

Tenho no acervo de relatos, ainda, visitas à Casa Santa Zita, no Uberaba, abrigo de mulheres que envelheceram como empregadas domésticas e que perderam os próprios vínculos familiares. Outrora “moças do interior” viram-se descartadas assim que suas costas arruinadas as impediam de lavar camisas brancas na mão ou de esfregar a calçada com a fúria da vassalagem do Castelo de Versalhes. Para não dizer que não falei das flores, uma trupe de mulheres ricas salvou as zitinhas, como são chamadas, de verem a casa fechar, por falta de recursos.

De todas as narrativas, a mais cinematográfica é a de uma ex-doméstica que se tornou minha amiga para todo o sempre. O que conta tem contornos de fábula brasileira – e a admiro por ter saído do papel de figurante para o de atriz principal. Merecia uma ponta no delicioso filme Domésticas, de Fernando Meirelles e Nando Olival. Oriunda do Centrão do Paraná, ela comeu o pão amassado pelo diabo numa residência na qual foi contratada. Os maus-tratos envolviam, sobretudo, a sonegação de alimentos, em escala épica. Aguentou o quanto pôde, até pedir demissão e se empregar, por décadas, numa instituição religiosa – local onde encontrou o respeito que procurava.

O “falar de si”, o “depor”, expressa uma catarse necessária, uma imposição para peitar o estranho século 21

Numa ocasião, procurou a ex-patroa e a convidou para um café, sábado à tarde, para se empanturrarem de açúcar, em nome dos bons tempos. Para surpresa, o convite foi aceito. Tudo o que de melhor havia na dispensa aterrissou na mesa. O serviço de cozinha mobilizou irmãs, cunhadas e simpatizantes. Ao término, com a dona ainda estalando a bochecha, depois do último brigadeiro, seguido de mais uma fatia de cuca de banana – especialidade da anfitriã –, a ex-empregada lhe soltou os cachorros. Declamou, solfejou e berrou todas as humilhações que sofreu. Protestou de forma intestina que não se nega comida a ninguém – um crime lesa-humanidade. Foi seu Bacurau.

OK. Djamila Ribeiro fala de sonhos e não de desaforos. Melhor encontrar meio termo na palavra “depoimento”, na qual cabem os pianíssimos e os fortíssimos presentes no ato de contar uma história de vida. De uma década para cá, pode-se dizer que os depoimentos viraram um gênero jornalístico e literário, tamanha sua emergência. Renderam, inclusive, um Nobel à bielo-russa Svetlana Aleksiévitch – autora de Vozes de Tchernóbil, A guerra não tem rosto de mulher e O fim do homem soviético, entre outros. A autora elevou uma prática que mais parecia uma antessala da entrevista à categoria de grande arte. Svetlana “costura” as falas, recolhidas em repetidas vezes, até que superem a repetição mecânica, o clichê e a banalidade. A técnica se assemelha a uma escavação psicanalítica, mas sobretudo estímulo ético, estético e erótico a provar o sabor da coragem.

É fato que se pode apontar fragilidades nesse movimento. Depoimentos ao vento correm o risco de virar vitimização, viagem ao redor do umbigo, supervalorização da própria biografia – numa fatal perda de escala entre a nossa história e a história coletiva. Mas tudo indica que o “falar de si”, o “depor”, expressa uma catarse necessária, uma imposição para peitar o estranho século 21. A ensaísta argentina Beatriz Sarlo chama o fenômeno de “guinada subjetiva”.

Em vez de projetarmos o que vivemos nos personagens da literatura, do cinema, da mitologia, de modo que eles nos ajudem a mediar conflitos internos, migramos para o centro da cena, afirmando a nossa própria existência como medida de todas as coisas. Grosso modo, mais e mais gente toma a palavra e se coloca na posição de “subjetivistas” do naipe da rainha da chanchada Dercy Gonçalves, da madrinha Hebe Camargo ou da esfinge Elza Soares – para citar três “depoentes” que habitam o imaginário brasileiro, pela ênfase com que falaram e falam de si. Pode gerar distorções. Mas sobretudo, tomar a palavra, com força, tende a demarcar territórios. A voz, na primeira pessoa, exige marcos humanitários capazes de conter tiranias. Fora com elas. Nunca mais bifes atirados aos cães.

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