José Carlos Fernandes

A hora e a vez de Antônio Arney

José Carlos Fernandes
14/04/2019 21:00
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Antonio Arney (88), artista plastico, comecou a trabalhar na decada de 1950 com carpintaria artistica. Amanha, terca-feira (22), ele abrira uma exposicao no Museu Guido Viario com obras feitas a partir de madeiras consumidas por cupim. Na foto, Antonio Arney ao lado de algumas obras da exposicao. Foto: Arquivo Gazeta do Povo. Arte: Felipe Lima.

Muita gente nem imagina, mas pode ter em casa um objeto produzido pelo paranaense Antônio Arney, 92 anos. O veterano é um dos expoentes incontestes da arte contemporânea – a daqui e a de lá. De seu currículo consta… a 11.ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1971, para citar um item ao léu. Entre os mecenas mais devotados que arrebanhou está o arquiteto Jaime Lerner. Como glórias não pagam contas no final do mês, durante bom tempo o artista dividiu uma barraca com a filha Isabel, na Feira de Artesanato do Largo da Ordem. Fazia utilitários de madeira – em especial armarinhos e balanços. Vendia a rodo – Arney para todos. Mas poucos ligavam o nome à pessoa. Atrás do balcão estava um sujeito “simples de tudo”, como se diz, ás dos formões e das dobradeiras, um rosto na multidão.
Não se queixa do anonimato daqueles dias, até porque não tem lhe sobrado tempo: há seis anos deu de recolher louros que lhe caem pelos ombros. É como se uma febre Antônio Arney tivesse contaminado críticos, historiadores de arte e simpatizantes. O artista mereceu boas exposições no Museu de Arte Sacra, no Museu Guido Viaro e contabiliza entre seus timoneiros a artista plástica Eliane Prolik e o pesquisador Fernando Bini, para citar dois que se negaram a aceitar o apagamento desse nome que marcou a geração 50-60 da arte brasileira. Sim – Antônio Arney amargou quase duas décadas de anonimato.
A mais recente honraria a ele dedicada é o livro de artista Comparação de valores, organizado por Giselle de Moraes, novata no ramo, recém-saída da Faculdade de Artes do Paraná, a FAP. Essa é a graça. Entre ela e Arney existem pelo menos seis décadas de distância. Ao contrário do que se previa, a diferença geracional só lhes faz bem. A obra – capa dura e coisa e tal – preenche um espaço vazio na biografia de Antônio Cordeiro dos Santos, o Arney – nome que deveria ter, retirado de algum filme americano, mas que o pai esqueceu qual era quando chegou na porta do cartório. Ainda que seja merecedor de três pastas abarrotadas de recortes e fotografias no arquivo do Museu de Arte Contemporânea (MAC), o mais completo do estado, e seja incensado por cinco a cada cinco historiadores de arte paranaense, ainda não haviam lhe dedicado um trabalho de fôlego. O pecado está perdoado.
Além da cronologia primorosa – feita a quatro mãos com Eliane Prolik – e da reunião de textos escritos sobre Arney, em tempos idos – a exemplo do assinado pelo crítico Eduardo da Rocha Virmond –, a pesquisa de Giselle registra a existência de produções até então pouco conhecidas do artista. Estavam encarceradas no acervo de colecionadores particulares, que as guardam como se fosse um Courbet. São uns eleitos. E se sujeitam a um método mascate de compra e venda: batem à porta do artista artesão, na modestíssima casa ateliê que divide com a mulher, Ivete, numa descida de dar medo na Rua Tabajaras, Vila Isabel. Saem dali com obra-prima debaixo do braço, um tesouro embrulhado em jornal. Se forem alérgicos a pó de cupim, espirram antes de cruzar o velho portão de ferro. É o preço.
A parceria da jovem Giselle com o decano Arney é desses encontros que Vinícius adoraria cantar. Ela estudava a produção do brasileiro Arthur Bispo do Rosário para um trabalho de conclusão de curso, orientado pelo pesquisador Artur Freitas. Estava satisfeita com a escolha, pelo menos até acompanhar Eliane Prolik, com quem fazia um estágio, a uma exposição de “um paranaense que você precisa conhecer”. Nunca tinha ouvido falar de AA – o que admite entredentes. Quanto mais suspeitar que poderia engatar uma conversa com ele, o que fez tempos depois. Bateu o santo. “Fiquei surpresa em saber que ele ainda estava a todo vapor, mesmo sendo um homem de idade avançada. Me impressiona esse vigor”, diz. A parceria se tornou inevitável, fazendo nascer o projeto do livro. Tudo a festejar. É bonito assistir a Arney feito criança, no meio das caixas com os exemplares que levam seu nome na capa. Olhando para trás, também mal se poderia imaginar.
Assim como um de seus contemporâneos – o pintor trágico Miguel Bakun, a quem conheceu –, Antônio Arney não passou por uma educação formal. Fez curso técnico, fonte de suas noções básicas de contabilidade. Sua trajetória é um clássico brasileiro. Nasceu de família numerosa na zona rural de Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba, fadado a trabalhar cedo e conquistar uns dobrões para cobrir as despesas. Detalhe: o pai era marceneiro, mas arriscava pintar naturezas mortas e paisagens num barracão, quase em segredo. Teria sido o primeiro contato do filho com as artes. Antes de se entregar à luxúria criativa, porém, serviu o Exército no Rio de Janeiro, em fins da ditadura Vargas. Até que…
Na volta à capital, dois conhecidos de flanagem da Rua XV – José Maria Pires, de uma família de funerários, e Alceu Schwab – um expert em música brasileira, em especial a que animava o Cassino do Ahú – o apresentaram ao pintor Fernando Calderari, sua admiração confessa. O chão se abriu. Era final dos anos 1950. Curitiba não passava uma semana sem ouvir boatos sobre catiripapos entre a velha guarda da pintura, à sombra de Alfredo Andersen, às voltas com seus pretensiosos salões da primavera, e uma garotada enfeitiçada pelo pintor Fernando Velloso, um sujeito talentoso, charmoso e cosmopolita. Graças a ele, CWB experimentou um abalo sísmico estético. O quartel general dessa turma do barulho era a Galeria Cocaco, na Rua Ébano Pereira esquina com a Cândido Lopes, àquela altura já sob o comando da marchande Eugênia Petriu. É história à parte.
Os frequentadores do reduto revolucionário tinham pouco a ver com Arney – vindo da periferia, sua perspectiva mais otimista era arrumar um emprego como auxiliar administrativo, o que de fato se deu (bateu ponto na Pernambucanas, Hermes Macedo e Antarctica). A contar pelo seu testemunho, não se importava com os abismos bancárias entre ele e seus amigos. Teria sido de Calderari que ouviu o “seja você mesmo”, “siga teu caminho”, dica que o redimiu da doideira de tentar se parecer com os colegas que tinham estagiado em ateliês da França e da Itália. Nem a Escola de Belas Artes desejou cursar.
“A Belas não suportaria um cara que fazia colagens com papel. Eu não queria nada de superfície, queria algo encorpado. Comecei a misturar gesso, cola, fiz de tudo o que me veio à cabeça, tive a fase de usar parafuso…”, pontua, sobre uma das técnicas na qual se destacou antes de enveredar pelas peças de madeira descartadas – de pés de cadeira a caixilhos devorados por cupins, candidatos ao lixo mais próximo, pequenas arquiteturas em suas mãos. “Eu me dediquei à textura da madeira, à textura do papel tingido. Procurava efeitos diferentes. Pintava um monte de papel… Usei muita coisa do lixão. E quando não posso mais ir atrás, filhos e netos o fazem para mim.”
Pois seguiu sua intuição e se tornou – em silêncio – o sujeito que faz qualquer ser minimamente informado se sentir diante de um gigante. Foi assim com Giselle de Moraes. Ela trocou Bispo do Rosário por Antônio Arney e deu início a um inventário estético que, já não era sem tempo, coloca o artista paripassu com gente do naipe de Farnese de Andrade e Rubem Valentim. “Acho que existe uma associação entre o Bispo e ele, no uso de elementos não convencionais. Mas o que me impressionou era que Arney destoava muito da produção paranaense em geral. Eu nunca tinha visto nada parecido. E nada, nada estava sistematizado. Não havia um sobre ele. Arney não é de falar muito sobre o que faz. Não nomina o que produz, mas sua produção está em pé de igualdade”, observa Giselle – a pesquisadora que viu um rei.