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A leitura em temporada de gripe
| Foto: Felipe Lima

A contar pelas sugestões insistentes, a profecia há de se cumprir e o Brasil vai se tornar um país de leitores. Por ironia, o fenômeno será obra e graça do coronavírus. Repare. Em meio à temporada de gripe – como há muito não se via em extensão e tragicidade – algumas das postagens mais recorrentes são sobre livros. O amoroso “fique em casa” vem seguido do “coloque a leitura em dia” e do “escolha um bom título” ou “atire-se num sofá com um livro nas mãos”. Na esteira dessa boa palavra, surge quase sempre alguma sugestão de leitura ligada a momentos semelhantes da história, quando pestes colocaram a humanidade a perigo.

A dica mais frequente é Decameron, de Boccaccio, uma coletânea de pequenos contos escrita na Itália da primeira metade do século 14. São “novelas nada exemplares”, é bom que os pudicos saibam. Do mesmo modo, não é leitura fácil, pois o humor é datado. Ou seja, não gargalhamos ao ler essa obra assim como no século 24 ninguém vai rir das diabruras do Porta dos Fundos. Humor é pão que se serve fresco.

Boccaccio coloca na boca de nobres, que tinham dinheiro para se isolar de uma das muitas pestes da Idade Média, historietas que contavam uns aos outros em meio ao tédio das infindas quarentenas. Para quem ainda acredita na lorota de que o Medievo foi a Idade das Trevas, o livro revela uma solene decepção. A tomar pelas narrativas picantes, como se dizia, o período é mais ousado que o dos libertinos do século 18 – quando o erotismo se torna uma provocação ao quadradismo racionalista – ou mesmo do que os indomáveis anos 1960 – aqueles que promoveram o arrombamento das portas da percepção, diminuíram as saias e deixaram as ideias e os cabelos crescerem.

A contar pelas sugestões insistentes, a profecia há de se cumprir e o Brasil vai se tornar um país de leitores. Por ironia, o fenômeno será obra e graça do coronavírus

Uma dica é assistir ao impagável Decameron de Pier Paolo Pasolini. Na mão de um cineasta sem muito talento, as pequenas narrativas sem-vergonha não acenderiam nem o mais reprimido dos pios. Mas Pasolini faz uma obra-prima em que o ridículo das situações emerge, permitindo que percebamos sua atualidade. Não faltam alusões saborosas à hipocrisia e à cara de pau, onipresentes no século 14 tanto quanto no século 21. Bocaccio, nem tampouco Pasolini, poupam o clero, os religiosos e a burguesia estabelecida. Fazem o feitiço virar contra o feiticeiro, a vingança do pipoqueiro – o motivo de pilhéria são aqueles que estão elegantemente vestidos, alienados na proteção do castelo, enquanto a patuleia morre de varíola ou coisa que valha.

Em tempo – a gente não chora de pena, o que seria natural. É de se acabar a história do miserável que se faz de surdo para se hospedar num convento, onde passa a desfrutar da confiança e da intimidade de um grupo de freiras. Não contaria nada a ninguém, afinal. Ou do casalzinho à Romeu e Julieta, cuja desfaçatez pornográfica em nada lembra a inocência dos apaixonados criados por Shakespeare. A propósito, a maluquice de Decameron merece ser lida do lado de um ensaio contemporâneo – Saturno nos trópicos, do gaúcho Moacyr Scliar. Desconheço quem tenha se aventurado pela obra e a abandonado, alegando chatice ou sono intermitente. Médico de formação, Scliar faz uma anatomia dos estados de melancolia das populações europeias expostas às pestes. Cidades inteiras eram dizimadas. A solidão e o sentimento de abandono divino – o que queria, afinal, aquele Deus vingador? – praticamente inventaram a depressão, nos moldes em que se conhece hoje.

Paralelo, Scliar fala de outra melancolia – a dos negros africanos, arrancados à força de seu continente, e aqui desenraizados. Separados de sua terra e da sua família, escravizados e expostos a uma língua e cultura estranha – e fadados a uma nova religião –, esses espoliados provavam do banzo e imprimiram a tristeza ao caráter brasileiro. O humor sacana e ácido da obra de Boccaccio, claro, derrete diante da precisão com que Scliar explora as camadas de nossa epidérmica alegria carnavalesca. De quarentena, em busca de uma obra para cutucar os sentidos? Saturno nos trópicos.

Outra dica de leitura em tempos de gripe é Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe, jornalista e ficcionista britânico do século 17/18, mais conhecido pela novela Robinson Crusoé e a máxima que acompanha a obra, a do homem e sua ilha. A narrativa de Um diário contempla a epidemia londrina de 1665. É fantasiosa, livre, descolada dos fatos reais e se formou a partir do depoimento de terceiros – Defoe contava menos de 6 anos quando a tragédia aconteceu. Tinha tudo para virar um rodapé da história, mas se deu justo o contrário. Pode-se dizer que Um diário é uma matriz para tantas outras variações para o tema. Foi reciclada em diferentes tempos, como a melhor tradução dos momentos em que estamos à mercê de vírus assassinos, que não escolhem ricos nem pobres, e que nos igualam na marra. Algo se deve aprender disso, e tomara que não seja o ódio.

A ira dos deuses não é a única metáfora que acompanha as pandemias e quetais. Há outros paralelos: os períodos pandêmicos e epidêmicos dizem quem somos. A peste, uma das obras-primas de Albert Camus, se nutre de uma proliferação infernal de ratos – pondo a reboque toda a população – para falar da sensação de uma Europa invadida por nazistas. Dica: no delicioso filme Minhas tardes com Margueritte, a personagem que inspira o filme (Gisèle Casadesus), uma “senhora na idade” do tipo que causa urticárias em governantes neoliberais, lê A peste para um sujeito limítrofe interpretado por Gérard Depardieu. É lendo – ou, no caso, escutando – que esse leitor tardio descobre a ironia, motor de toda leitura, como ensinou o polêmico crítico Harold Bloom. Torna-se pessoa – eis a mensagem.

Tudo bem – não é preciso ser tão elevado em todas as leituras. As recreativas e desencanadas de “dizer algo” são permitidas, mas, em se tratando de tragédias de saúde pública, a realidade se impõe à literatura e pede para ser significada. As pandemias atiçam a imaginação dos ficcionistas, mas também o lado sociólogo desses criadores. É o caso de García Márquez. Em pelo menos dois títulos o Nobel colombiano explora as pestes. No superlativo Cem anos de solidão, a pequena cidade de Macondo enfrenta um alucinante surto de insônia. E, em O amor nos tempos do cólera, uma paixão que demora “51 anos, nove meses e quatro dias” para se concretizar encontra numa quarentena sua janela de oportunidades. Márquez consola todos os amantes que esperam. A passagem em que Florentino, o apaixonado resiliente, seduz Fermina Daza – ambos na casa dos 70 – é uma das mais belas descrições do amor erótico já descritas. Infelizmente, a versão para o cinema, lançada em 2007, não se salva nem com a interpretação de Javier Bardem. Prefira o livro.

As pandemias atiçam a imaginação dos ficcionistas, mas também o lado sociólogo desses criadores

Uma dobradinha com O amor nos tempos do cólera é Ensaio sobre a cegueira, do português José Saramago. Não é exagero dizer que se trata de um dos melhores momentos do autor. Ele imagina uma peste que deixas as pessoas sem visão – mas, em vez de tudo ficar no breu, vigora uma angustiante luz branca. Tudo começa quando um homem perde a visão num sinaleiro. Todos os que o socorrem são contaminados pelo vírus, exceto uma mulher, que passa a conduzi-los não só sobre a devastação urbana, formada pela epidemia, como pelos caminhos da alma. O pior da natureza humana emerge. Em se tratando de Saramago, que não se espere assopros nas feridas. A versão cinematográfica, do brasileiro Fernando Meirelles, é bem bacana – e tem no elenco os infalíveis Julianne Moore e Mark Rufallo – e vale uma tarde de quarentena.

Mais? Eis um bom momento para reler O mez da grippe e outros livros, de Valêncio Xavier. O paulista que produziu sua obra em Curitiba parte das notícias de jornal para reconstruir – com toque de alucinação – a Gripe Espanhola de 1918 na capital paranaense. A respeito desse episódio que teria matado mais de 15 milhões de pessoas no mundo – os números são incertos –, uma boa pedida é Metrópole à beira-mar, de Ruy Castro. A primeira metade do livro explora a matança promovida pela gripe no Rio de Janeiro. E a resposta da população em 1919, pulando um eletrizante carnaval. O troco à vida breve é a folia.

PS.: Caso suas leituras sejam temáticas, melhor não esquecer o ensaio A doença como metáfora, de Susan Sontag. A ensaísta americana explora conceitos básicos como: ninguém é culpado da enfermidade da qual padece, ninguém “enfrenta” ou “perde” para um câncer ou para a Aids (tratada no correlato A Aids como metáfora). O texto serve como antídoto para os que querem transformar o coronavírus numa apologia da xenofobia e dos nacionalismos. Melhor pensar que respiramos o mesmo ar – e esse fato inalienável diz algo sobre como deveríamos ser e estar no mundo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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