José Carlos Fernandes

A memória, essa locomotiva

José Carlos Fernandes
19/04/2020 19:00
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Faço parte do grupo de milhares de brasileiros que se tornaram cuidadores de seus idosos. Eu e meus irmãos. Não é uma situação nova para nós, mas uma circunstância acentuada pelos caprichos do coronavírus, esse diabinho que a turma do bar cutuca com vara curta. Dispensa apresentações. Só não digo que trocar de sapatos feito a Imelda Marcos, deixar casacos pelos “campos neutrais” da casa e se encharcar de álcool gel virou rotina porque rotina implica em se acostumar com certos expedientes. Não é o caso. Peno. Erro. Atravesso o samba.
Não sou a Adriane Galisteu (risos), mas já me vi,
rodo na mão, desinfetando chão às dez da noite, cantando “como será o amanhã?”,
crente de que uma nuvem de maldição oriunda do Antigo Testamento passou por
debaixo da porta. Antes de o Roberto Carlos fazer do TOC um transtorno tão
popular quanto Como vai você ou Detalhes, duas de suas canções mais
famosas, essa reação atendia pelo nome de “mania”. Ou de “escrúpulo” – caso
fosse praticada pelo padre; ou ainda “capricho”, se viesse de alguém com berço.
Pois sofro dos três males, a nível agudo e crônico. A Covid-19 atiça todas as
lombrigas.
Tem o lado bom – as histórias que brotam da quarentena, como se todos fossem Henry David Thoreau. Causo ali, causo acolá nos consolam quando estamos estirados no sofá, derrotados, a máscara pendurada na orelha esquerda, convictos de que teríamos trabalhado menos se fôssemos voluntários num campo de refugiados da Etiópia. Esses dias, minha mãe – cuja simpatia, distribuída sem distinção, faz falta nas ruas da Água Verde – usou as horas vadias para relembrar... o dia de seu casamento.
O climão da gripe trouxe à memória um fato novo e hilário, não registrado no álbum de fotografias, nem nos anais do pensamento mágico
O anúncio da narrativa prestes a começar não foi
recebido com o rugido da Leão da Metro. A essa altura do calendário maia, julgávamos
saber de trás para frente o que aconteceu naquele 5 de outubro de 1957, uma
data mais ou menos feliz, como o tempo se encarregou de revelar. Só que não. O climão
da gripe trouxe à memória um fato novo e hilário, não registrado no álbum de
fotografias, nem nos anais do pensamento mágico.
A mãe contou que ainda em casa, antes de subir ao
altar – na Paróquia do Bom Jesus do Portão –, uma enfermeira de ocasião teve de
ser chamada na vizinhança. Mal chegou, pôs-se a correr atrás da guria, já vestida
de noiva, para lhe aplicar na bunda uma injeção contra a gripe asiática. O
vírus tava pegando todo mundo. Minha mãe se casou menina. Tinha 16 anos. Fez um
permanente nos cabelos, que não lhe caiu muito bem. O noivo era bonitão de
fato, mas praticamente um desconhecido. O vestido – uma imitação barata do
usado por Grace Kelly, um ano antes, ao “contrair núpcias” com o príncipe
Rainier – era emprestado de uma tia, que tinha casado com a mesma roupa, no
mesmo dia, de manhã, e o fez ardendo em febres. Estava com... gripe asiática. Como
não havia negacionistas a postos, restou à mãezinha a tortura da agulha em
troca da esperança de um final feliz.
A picada se assemelhava a um castigo de pena de morte, uma cena preto-e-branco do cinema noir. Os mais antigos lembram dos kits de alumínio usados para aplicar injeção em domicílio. Iam ao fogo alto. O barulho da ampola de vidro sendo quebrada com uma sardela mexia com os nervos. O apetrecho era em geral manuseado por uma parenta que batia polenta para os operários da Todeschini, mas “que levava jeito para o ofício da enfermagem, só não tinha o curso do Instituto Catarina Labouré”. Não tinha refresco nem Hirudoid.
Quem não pegaria véu, grinalda, buquê e arrancaria,
descalça, pela linha do trem? Dona Judite devia ter escapado pela Rua Frei
Gaspar Madre de Deus adentro, dito não ao casório e se tornado uma libertária
Simone de Beauvoir das araucárias. Não foi o que aconteceu. Pôs aliança no dedo,
teve filhos, usou touca bóbis, decorou as músicas da Jovem Guarda, criou rugas,
enviuvou e viveu para saber que a gripe asiática, aquela da adolescência, era
bolinho de chuva perto da Covid-19. Daí ela se lembrar de repente do fato
adormecido. A memória funciona assim. Age malandra, ao sabor das circunstâncias,
como ensinam Bergson, Bartlett,
Halbwachs, Beatriz Sarlo e uma leva de teóricos que se dedicaram a esse
tema que é um verdadeiro “meu iáiá, meu iôiô” – uma amante imprevisível.
Reparem. Desde que o recolhimento em massa (!)
começou, as redes sociais estão apinhadas de registros de pequenas aventuras
familiares, brotadas nas sombras do recolhimento. Há uma partilha constante de
fotos antes esquecidas nalgum livro. Efeito, por certo, das muitas horas passadas
diante daquela cômoda que pertenceu à vovozinha. Esse momento antessala do
Juízo Final é propício às lembranças. Como não raro se dá na companhia dos
velhos, bem podia ser potencializado, gerando um arquivo universal de relatos
esquecidos. Faríamos justiça a esses silenciados pela sociedade que cultua músculos
tonificados e sorrisos recapados.
No mais, a tara por produtividade tende a nos impedir de ouvir o que o corona quer nos dizer. Pois os velhos entendem essa mensagem. Sabem por que deu merda e expressam suas explicações em linguagem disfarçada: “Tudo isso está acontecendo porque ninguém mais senta para tomar café da tarde e para jogar conversa fora”. Pressa, velocidade, afobação... eis a síntese desse desastre em escala cósmica.
A tara por produtividade tende a nos impedir de ouvir o que o corona quer nos dizer. Pois os velhos entendem essa mensagem
Reproduzo as palavras da escritora polonesa Olga
Tokarczuk, Nobel de Literatura, escritas em meio ao tédio da quarentena. Aliás,
Olga nos deve uma visita, pós-pandemia, ao Pilarzinho e Santa Cândida. Ia se
sentir em Breslávia, onde vive:
“Voltam até mim, com insistência, imagens da
infância, quando havia muito mais tempo e era possível ‘desperdiçá-lo’ olhando
pela janela horas a fio, observando as formigas deitada debaixo da mesa,
imaginando que era uma arca. Ou estudando uma enciclopédia. Não teríamos, por
acaso, voltado para o ritmo normal da vida? O vírus não seria, então, um desvio
da norma, muito pelo contrário – aquele mundo frenético antes do vírus teria
sido anormal? Afinal, o vírus trouxe à nossa memória aquilo que reprimimos
apaixonadamente – que somos seres compostos da matéria mais delicada. (...) Ele
nos mostrou que a nossa mobilidade frenética constitui uma ameaça para o mundo.
E reavivou a mesma pergunta que poucas vezes tivemos a coragem de nos fazer –
de que mesmo estamos à procura?”
Pois o normal seria ouvir pela centésima vez a história de um casamento, sem bater os pezinhos da impaciência. Suspeitar de que por trás de cada historieta repetida à exaustão se esconde uma narrativa apagada, tão interessante quanto. Para achá-la, basta às vezes uma pergunta, as tolas, inclusive. Lembro do jornalista Geneton Moraes Neto (1956-2016) indagando aos dois veteranos de guerra americanos responsáveis pelas bombas atiradas sobre Hiroshima se “eles dormiam à noite”. Sim, como dois homens que mataram 60 mil pessoas encostam a cabeça no travesseiro? Antes de Geneton, ambos diziam aos historiadores que estavam cumprindo ordens, que havia uma guerra. Depois daquela pergunta tão despretensiosa, lamentaram não terem desertado.
Eis o ponto. A quarentena nos coloca num estado de
exceção mental. Quase um transe. Tende a trazer à baila episódios de guerra, de
enlaces, de injustiças contra irmãos, de paixões nunca consumadas. Reaviva momentos
engraçados, hábeis em fazer valer a máxima que ninguém devia se levar tão a
sério. É o caso da noiva romântica em fuga diante de uma injeção.
Não faltam equipamentos para registrar as falas dos
velhos. Perdoem a pieguice, mas os melhores ainda são os ouvidos e o coração.
De resto, não é pecado usar um celular, que filma e grava. Poderíamos fazer
coro com o intelectual francês Philippe Lejeune, que coleciona narrativas de
anônimos. Ou nos rendermos ao Museu da Pessoa, cujo acervo é a palavra de gente
como a gente. Basta admitir que homens e mulheres comuns participaram da
construção do mundo ao acordar todo dia, para trabalhar e criar filhos.
Para recolher depoimentos existem alguns macetes. 1. Não o faça com pressa corporativa. A
memória tem ojeriza à ejaculação precoce. Sua lógica é seletiva, regida pela
preguiça e pelo prazer. 2. A
primeira fala é a que foi repetida inúmeras vezes – é confortável e
domesticada, não fere nem faz rir. A melhor vem depois, às vezes no dia
seguinte, depois que o depoente dorme com as palavras que disse. Ajuda
incomodá-lo com perguntas simples – “como você pagava suas contas?”; “quem era
sua vizinha?”. 3. Provoque
depoimentos diante do álbum de retratos. Não raro a prosa muda de rumo diante
da foto de uma tia que morreu cedo ou de uma irmã que foi expulsa de casa. 4. Explore pequenas contradições que
aparecem na fala. Ali está o tesouro. Exemplo? Tendemos a construir histórias
heroicas sobre nós mesmos, mas todo mundo deve algo a alguém. Insista em saber
qual parente, professora ou amigo estendeu a mão a seu depoente. A gratidão é
uma das chaves mais potentes para acionar a locomotiva da memória. Experimente
– você vai ter seus dias de Kurosawa em plena quarentena. E os velhos, sua hora
e vez. Já não era sem tempo.