Redação

Notas sobre nada de mais. Ou “a pessoa é para o que nasce”

Redação
23/06/2019 20:00
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Lembro que achei divertido
o slogan do programa Zorra, que
dizia: “Está difícil competir com a realidade”. O Brasil de 2018 – o das
eleições – deixou os humoristas, digamos, sem graça. Pois não só eles – a
máxima vale para as demais categorias profissionais que lidam com linguagem e
pensamento elaborado. Tudo, mas tudo mesmo ficou contaminado pelo debate
político, uma cizânia que invadiu 2019 e – não é preciso ser vidente para saber
– vai se espraiar ao infinito.
A jornalista Eliane Brum – e outros lúcidos a quem nos cabe acompanhar, sob risco de ficar dançando no escuro – chegou a dizer que mesmo que os ânimos arrefeçam, o estrago está feito. Fedeu. Não daremos conta de assoprar tantos machucados; de lamber tantas feridas. A tal polarização criou em nós um efeito semelhante ao vivido pela magnífica atriz Norma Aleandro no superlativo longa-metragem argentino História oficial (1985), assim que se dá conta de ter casado com um torturador. Ela dormia com um desconhecido. Sua expressão no filme supera Gloria Swanson em Sunset Boulevard. Desbanca Greta Garbo. Perplexidade? Talvez a palavra seja “horror”, no sentido Joseph Conrad do termo.
O saldo dessa ressaca é
que todo e qualquer assunto que não passe pelo Planalto Central equivale a um
suspiro no meio do furacão. Impacto zero. Nota só. Volta e meia me pego
contando quantas vezes o nome “Bolsonaro” aparece em uma única edição dos
jornais. Uma pessoa sem luz no centro da cena – como é que pode? Fora as frases
dele no corpo das matérias e dos artigos, somadas às abobrinhas ao vento
soltadas por seus trolls investidos
do cargo de ministros, só que ocupados de torrar a paciência e minar o processo
civilizatório.
Talvez estejamos
assistindo a uma das estratégias de desagregação social mais diabólicas da
história. E quem atua com grupos de qualquer espécie sabe o poder que tem um
desagregador. Convivi com alunos desagregadores, parentes e colegas de ofício. Não
tenho dúvidas – sofrem de uma patologia severa. Não lhes cabe a
camisa-de-vênus, mas a camisa-de-força.
A intensidade da centrífuga em que nos metemos pede que nos agarremos a qualquer galho que passe ao lado. Dá vertigem. Em desagravo, lembro de uma expressão da ensaísta norte-americana Susan Sontag. Ela exortava os leitores a se protegerem dos “saqueadores de mentes”. Eles existem. Agem no WhatsApp, por exemplo. E jogam sal em qualquer solo que não seja o deles – para que nada nasça ali. A turma do Zorra tem razão: essa competição é covardia. “Pé no saco”, diria o filósofo.
Senti o nocaute da realidade atual – sempre a postos contra a graça, qualquer que seja ela – na semana passada, ao participar do TEDx Rebouças. Foi um convite do agitador-empreendedor Ricardo Dória e da jornalista e produtora Flávia Beduschi Coelho, ambos da Aldeia Coworking, com sede na capital. O evento internacional – que teve aqui um braço regional – dispensa apresentações. Os convidados desfrutam de até 18 minutos para discorrer sobre um tema de sua escolha. Dada a largada no relógio, seja o que os deuses ajudarem. Não se pode falar de política partidária, nem palavrão – a não ser que escape. Depois de tanto ensaio para não errar, basta uma sinapse fora do script e a gente se perde. Me perdi, um Holden Caulfield na Tonga da mironga do kabuletê.
A edição curitibana
teve momentos memoráveis e, mesmo sabendo ser um recorte capenga, destacaria as
apresentações da arquiteta Ety Cristina Forte Carneiro – do Hospital Pequeno
Príncipe – e a designer e refugiada síria Myria Tokmaji. Sabe razão &
sensibilidade? Pois é. Palmas para elas.
Para desfrutar da parte
de minutos que me cabiam naquele latifúndio, tomei como subtexto um ditado
popular, muito repetido no Nordeste, salvo engano: “A pessoa é para o que
nasce”. A frase – hierárquica, fatalista e simplista – bem poderia ser detonada
na desconcertante pesquisa A cabeça do
brasileiro
, do sociólogo Alberto Carlos de Almeida. Seu equívoco? Legitimar,
ainda que sem essa intenção, parte da nossa verdadeira tragédia – a desigualdade.
Mas alto lá. Mesmo servindo como luva para deixar tudo do jeito que está, o ditado é um mantra de sabedoria. Um clássico, diria, equiparado a uma declaração do escritor norte-americano John Updike: “A vida tende a dar certo”. É bocó, péssima e idiota, mas Updike não errou. O que disse faz sentido. Não termina aqui. “A pessoa é para o que nasce” dialoga, por exemplo, com um dos escritos mais enigmáticos de que se tem notícia: “Deixe a vida acontecer. Acreditem-me: a vida tem razão, em todos os casos”, do poeta tcheco Rainer Maria Rilke. Muitos, diante dos destroços ou das glórias, lembraram em consolo do que disse Rilke. A pessoa é para o que nasce, e a vida tem sempre razão. Ou seja, uma boa porcentagem das equações existenciais não tem saída, eis a mensagem.
Em miúdos, se a regra do TED é o convidado falar do que se é capaz – e com potência o bastante para fazê-lo em um mísero quarto de hora –, a escolha tende a recair sobre o tema para o qual veio ao mundo, “tipo destino”. Foi uma sangria responder o “para o que nasci?”, antes de decidir sobre o que explanar.
Filho de imigrantes, que se tornaram comerciantes, flerta com a vida religiosa e deságua no jornalismo, como espaço possível para fazer vingar todos os desejos anteriores. De tudo que é lado, o apelo natural era para que eu discorresse sobre a arte e a técnica de entrevistar e escrever sobre pessoas comuns, aquelas que passam ao nosso lado da XV ou no Terminal Guadalupe. As pessoas anônimas sobre quem escrevi são, em alguma medida, meus parentes ilhéus que se empregaram como operários na fábrica do Matte Leão; os fregueses que atendemos em família no balcão do bar e da loja “de tudo” que tínhamos na Água Verde; a turma das comunidades católicas com as quais convivi em sete cidades diferentes; e a maioria dos personagens das 552 crônicas publicadas neste espaço, na Gazeta do Povo, apenas de 2008 até agora.
Sim – havia autoridade
mínima para discorrer sobre o assunto “histórias de gente”, à revelia da
expressão ser absurda. O parangolé era saber o que interessa falar disso em
meio ao campo minado em que pisamos todo santo dia – desemprego, violência, o
escambau. Acima de tudo, importa combater a propaganda insana contra a ciência,
o desmatamento consentido, o desmanche das universidades. Brigar pela liberdade
de expressão, pelas boas políticas de segurança pública e de mobilidade urbana,
pelo incentivo à cultura e o legado de Paulo Freire. Mas tem quem fale disse
muito mais e melhor – Eliane Brum, Marcos Nobre, Jessé Souza, Contardo
Calligaris, Marcelo Coelho, Jânio de Freitas...
Melhor compartilhá-los
e se recolher ao papel de espectador apreensivo. Ou lembrar – mesmo sem muita
audiência – o que mostrou o antropólogo Michel de Certeau em sua obra. Eram
duas opções. Nesse momento tem alguém batendo palmas no portão de um vizinho –
para socorrê-lo. Um sujeito que se encontra no último degrau, mas lançando mão
do espírito humano para driblar as desgraças. Uma artista escrevendo uma frase
redentora na roupa – ou na própria pele. Um doidinho passando demão de tinta
colorida na caixa do correio.
Venceu a segunda opção.
Não se trata de uma
crença tola na pequena atitude em detrimento às mudanças pelas quais devemos
brigar, na rua, no grito, por força da lei. Mas de reforçar que a humanidade é
a planta que nasce na rachadura do asfalto. Piegas, né. Mas lembrar disso ajuda
levantar da cama e saber que algum dos milhares de invisíveis decidiu dizer não
aos saqueadores de mente. Espreguiçou e se perguntou “a que veio”, diante do
espelho, com boca cheia de pasta dental. Teve medo do que disse a si mesmo. Mas
o medo saiu no xixi. A pessoa é para o que nasce.