Redação

A vida dos santos

Redação
12/10/2019 03:01
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Permitam uma memória – ela tem a franca intenção de acordar as suas. Meu primeiro contato com a vida dos santos se deu por meio de um livro para crianças, editado pela Paulinas, em 1965. Era ilustrado, primário e contava a vida de Bernadette Subirous, a menina que viu Nossa Senhora na cidade francesa de Lourdes, em 1858. Tenho a obra até hoje – e ali estão os garranchos com meu nome, escrito, presumo, aos 7 anos de idade.
Como ainda acontecia naquele tempo, a leitura foi o que especialistas chamam de “intensiva” – ou seja, li, reli e “treli” a perder de vista, a ponto de saber de cor o que acontecia em cada página. Não havia tanto material de leitura disponível, como hoje. Adorava a parte “à la Charles Dickens”, em que as irmãs Subirous iam ao mato catar lenha, para não morrerem de frio. Para um curitibano criado debaixo de temperatura polares, a passagem – de dar calafrios nas canelas – gerava cumplicidade.
Tempos depois, assisti na Sessão da Tarde ao filme A canção de Bernadette, de Henry King, que deu o Oscar de melhor atriz para Jennifer Jones – cujo nome traz de instantâneo a belíssima canção Love is a many splendored thing. É o tema de um outro filme da estrela – Suplício de uma saudade, de 1955, também de Henry King, no qual Jennifer, já uma mulher madura, troca beijos cheios de devoção – a palavra não é bem essa – com o galã William Holden. A trama de amor proibido se dá em Hong Kong, um cenário bem diferente da espartana cidadezinha de Lourdes. Na trombada das duas histórias resultou uma estranha sinapse infantil, não prevista pelos censores da época. Dali para a frente, a vida de santa Bernadette Subirous ganhou para mim Love is a many... como trilha sonora. Fica a sugestão, caso haja uma refilmagem.
Impossível trilhar a seara da vida dos santos sem cair de amores por São Francisco de Assis e, no mesmo pacote, por Santa Clara
Perseverei no ofício,
anos a fio. Houve a fase Santa Teresinha do Menino Jesus, a Teresinha de
Lisieux (1873-1897). Foi uma das melhores. O amor pagão da adolescente francesa
por Jesus era um enigma a ser decifrado, do qual nenhum compêndio de romantismo
me parece dar contas. Houve igualmente uma filmebiografia, vista no Cine Belas
Artes, em São Paulo, cuja cena mais marcante era Teresinha provando do catarro
de uma carmelita tuberculosa, com a intenção de adoecer e antecipar seu
encontro com o amado. Ah, fiz umas tantas trezenas a Teresinha e – paciência –
nunca ganhei rosas, sinal para os devotos de que a graça será atendida.
Convenci uma amiga a fazê-la. Vieram as rosas para ela, dezenas. E tenho
notícias de que está muito feliz.
Impossível trilhar a seara da vida dos santos sem cair de amores por São Francisco de Assis e, no mesmo pacote, por Santa Clara. A regra é cantar de cor todas as versões de “Senhor, fazei de mim um instrumento de tua paz”, cair no choro em pelo menos duas cenas de Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco Zefirelli – por exemplo, aquela em que os cabelos de Clara são cortados e que hoje (outra sinopse estranha) me faz relacionar a plácida Clara de Assis à atormentada Frida Khalo, que também passou a tesoura nas madeixas, na hora em que precisou dar num upgrade na existência. Em tempo, a nudez de Francisco, dando uma banana para os babacas, claro, é eterna, inspiradora, mas impraticável, sob o risco de condenação por atentado violento ao pudor.
Tenho para mim que podemos escolher um santo de devoção, mas também ser escolhidos por ele. Tentei me aproximar de São Luís Gonzaga (século 16) – mas era santidade demais para meu caminhãozinho. Ao terminar de ser sua biografia me senti às portas do inferno. Outro fracasso se deu com o maronita São Charbel Makhlouf (1828-1898), de quem me acheguei por influência de um preceptor. Não rolou empatia. Por sua vez, do nada, entrei para a confraria dos amantes de Santo Antônio de Lisboa (essa história de Santo Antônio de Pádua é fake, asseguro). Tenho enxoval completo em casa – de santinhos a imagens e quetais. Motivos da devoção? Todos e nenhum em particular. Trata-se de um amor gratuito, e essa é a graça: não entender.
Podemos escolher um santo de devoção, mas também ser escolhidos por ele
Houve fases menos
católicas – confesso. Nos verdes anos, passados no seminário, volta e meia
alguém propagava versões ingênuas e fantasiosas sobre a vida desse ou daquele
santo, não raro alimentadas por crendices em torno de relíquias de comprovação
duvidosa. Santa de tal era tão pontual que largou uma carta no meio, quando
chamada às obrigações. Ao retornar, a frase deixada incompleta estava escrita
com letras de ouro. Havia também um santo – dócil toda a vida. Ao morrer,
descobrem que seu estômago tinha virado uma pedra. Era ali que estava contida
toda a ira que dominava taurinamente. Desse vazão a seus instintos, seria um
gerente de RH. Como não sou chegado em ficção científica, me chamava mais
atenção Santa Rita de Cássia ter sido casada – como a minha mãe ou a sua – do
que o espinho de dor que lhe brotou na testa.
Essas e outras conversas que parecia narradas por Jack Palance, ainda bem, ganhavam compensações em episódios mais estimulantes, em torno de sábios como Santo Agostinho e São Tomas de Aquino. Ou nas revelações sugestivas à imaginação, em torno do amor espiritual entre Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz – no melhor estilo Nunca te vi, sempre te amei, o filme. No mais, recomendo escarafunchar os martírios dos santos na Igreja primitiva – os dentes arrancados de Santa Apolônia, os seios cortados de Santa Águeda, os olhos perfurados de Santa Cecília, as flechas desferidas contra um incólume São Sebastião. São infindas e se sucedem, em versões épicas, ao longo do cristianismo. A propósito, rola uma piada divertida nos meios clericais.
Diz-se que ser mártir, à revelia da crueldade, tem suas vantagens pragmáticas. Alguém que dê a vida pela fé não precisa, necessariamente, ser um modelo de virtude, o que dá um trabalho danado, leva anos, faz o estômago virar pedra. O importante é, na hora do pega-pra-capar, estar a postos. Muitos dos santos da Igreja são mártires – homens e mulheres dotados de ira ou mesmo de luxúria, mas sapientes do papel que tinham de assumir diante de uma apostasia, blasfêmia, heresia. Daí a piada: “A maneira mais fácil de ser santo é virar mártir. E a maneira mais rápida de ser mártir é conviver com um santo”. É para entendedores – e para quem já penou na mão de algum santinho do pau oco. Um martírio lento e insuportável.
Para entender as pessoas – comuns ou não – é melhor recorrer à mitologia grega do que à mitologia católica
Sei que toda essa prosa
é exótica e de pouca serventia. Entendi cedo que encontraria poucos pares a
tratar do assunto. Cada vez menos pessoas conhecem o sentido da palavra “hagiografia”
– termo usado para classificar a biografia dos santos. Caiu num “soletrando”,
derrubou todo mundo. Certa feita, fiquei surpreso ao flagrar o hoje escritor
Luís Henrique Pellanda, então no início de carreira como jornalista, confessar
sua taradice hagiográfica. Entendi que talvez fizéssemos parte de uma sociedade
secreta, fadada ao desaparecimento.
De resto, a hagiografia
não ajuda muito o jornalismo e a literatura. Aprendi isso quando fui aluno do
escritor Cristóvão Tezza, na UFPR. Para entender as pessoas – comuns ou não – é
melhor recorrer à mitologia grega do que à mitologia católica. Os deuses do
Olimpo são dados às paixões. Entregam-se aos pecados capitais. São falhos como
nós, o que permite o saudável jogo de espelhos. Os santos são inacessíveis,
acima do que podemos alcançar, o que gera em nós a paralisia. Mesmo assim, a
imprensa – em especial a televisiva – recorre à mitologia cristã ao apresentar
o seu João e a dona Maria, não raro pobres, sorridentes e edificantes. Surgem
achatados, sem sombras, assexuados, com a alma apaziguada, reduzidos ao bem que
fazem, como se isso fosse de fato humano. Quem de nós?
Como a vida dos santos é irresistível, ainda que inalcançável, sugiro servi-la on the rocks, ao som de Love is a many splendored thing.
Coluna dedicada à baiana Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, a Irmã Dulce – canonizada neste 13 de outubro de 2019. Minha devoção a uma frase que a religiosa teria dito – algo como “o tempo gasto tentando modificar as pessoas é um tempo em não amá-las como são”.