José Carlos Fernandes

A vida invisível das nossas tias

José Carlos Fernandes
17/11/2019 21:00
Thumbnail
Faço parte do público que saiu anestesiado do longa A vida invisível de Eurídice Gusmão. A direção é do cearense Karim Aïnouz e a produção concorre a uma vaga no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Torcia pelo título antes mesmo de assisti-lo. Virou uma fantasia a possibilidade de ver Fernanda Montenegro, aos 90 anos, brilhar na festa máxima do cinema – e talvez ter a palavra ao microfone, como ocorreu quando Central do Brasil ganhou o Urso de Ouro em Berlim, no ano de 1998. Andamos necessitados dessa voz dissonante – capaz de causar impacto em escala planetária. Se isso por sorte acontecer, Fernandona vai amplificar de Hollywood para o mundo as angústias da grande parcela de brasileiros que se sentem com falta de ar. Asma coletiva.
Depois de ver o filme, a torcida ficou redobrada, ainda que se trate de uma maratona bufona, como a dos garçons de Santa Felicidade, com a colher e o ovo à boca, na captura de um prêmio. Deixo essa análise para os críticos. Como público comum, temo pelo carinho que será destinado, lá e cá, a um filme lento – são duas horas e vinte de projeção –, cujos contornos de cinema de arte podem causar preguiça nesses tempos velozes e furiosos em que nos metemos. As protagonistas Eurídice e Guida (Carol Duarte e Julia Stockler, ambas divinas) suam muito em cena. A gente se sente com sovaco molhado também, numa espécie de efeito placebo. Trata-se de uma fita calorenta, que torna real para a plateia um Rio de Janeiro antigo, no qual os moradores expostos a temperaturas marroquinas não desfrutavam do consolo de um ar condicionado. Além de desfazer o nó do destino, os personagens têm de se abanar.
Sem surpresas nesse aspecto. Do primeiro ao último minuto, Aïnouz é fiel a si mesmo – está ali o diretor de Madame Satã, O Céu de Sueli e, permitam, o meu preferido: Praia do Futuro (2014). Se ainda não viu, coce-se. A cena dos apaixonados personagens de Donato (Wagner Moura) e Konrad (Clemens Schick) cantando Aline (et j'ai crié, crié, Aline, pour qu'elle revienne. Et j'ai pleuré, pleuré, oh! j'avais trop de peine...) é daquelas em que o melhor da grande se arte se realiza. Mais do que o “romance gay do Capitão Nascimento”, como se disse à época do lançamento, Praia do Futuro merece ser amado por tratar de uma questão cara aos brasileiros – a de que nossa paisagem interior pode estar em outro país, em outro idioma. Queremos morar no nosso lugar, não importa se esse lugar seja na Transilvânia. O parangolé é que carregamos, como uma culpa original, a obrigação de nos mantermos ao lado dos nossos, imolando a própria identidade.
Virou uma fantasia a possibilidade de ver Fernanda Montenegro, aos 90 anos, brilhar na festa máxima do cinema
Penso que, em A
vida invisível de Eurídice Gusmão
, Karim Aïnouz faz outra incursão às
sombras do Brasil profundo. Não cabe fazer sinopses a essa altura da procissão.
Grosso modo, o filme – baseado em romance de Martha Batalha – trata do
cotidiano das mulheres numa sociedade patriarcal, paternalista e cruel que lhes
passa a borracha, sem dó, com a desculpa de protegê-las. Sim, cruel. Não por
menos, lusitana, com um pai padeiro que age na base do chicote e a mãe que faz
compressas de silêncio. Aliás, permitam-me um ponto de fuga, o único ganho desses
tempos tirânicos é que estamos diante do espelho. Terapia de choque. Descobrimos
que não somos anjos. Que enganamos bem. Esqueçamos a avaliação positiva que os
estrangeiros fizeram de nós na Copa do Mundo ou nas Olimpíadas. O problema não
é Bolsonaro, seus filhos, sua turma de ministros destituídos de compaixão. O
problema é descobrir que temos vizinhos, amigos e parentes que pensam e agem
igual a eles. Algo do que acreditávamos sobre o país está morto – e estamos em
luto.
Na mesma toada, A
vida invisível...
faz pensar nos cadáveres que nossa aparente cordialidade
esconde nos armários. Cadáveres que têm sexo e gênero. Reparo que as pessoas
que assistiram ao filme reagem de maneira muito parecida – saem da sala de
projeção tirando a poeira dos baús, revirando as lembranças de avós, tias e
irmãs cujas biografias são tão invisíveis quanto a de Eurídice. Aliás, o título
do livro e do filme guarda uma ótima pegadinha. A irmã relegada ao apagamento é
Guida, banida da história por ter desobedecido convenções sociais, como se
dizia, mas é Eurídice – a boa moça – que se vê relegada a uma existência
tutelada e sem sabor, quebrada apenas quando não lhe sobra muito tempo de
chutar o balde.
O naipe das pequenas histórias familiares que passam a ser contadas pelo público, pós-filme, segue tudo o que é gosto. Algumas dessas narrativas domésticas sangram. Remetem às Bielas, personagem pálida do belíssimo livro Uma vida em segredo, de Autran Dourado. Para quem não leu, Biela é aquela prima agregada que vem do interior para dar um trato na cozinha, uma quarada nos panos de prato dos tios da cidade grande. É da família, mas seu papel é de empregada sem salário; seu direito é o de sentar no sofá da sala, comer sentada à mesa dos donos da casa, desfrutar da intimidade dos parentes patrões.
As memórias passam pelas Eurídices, mas sobretudo por Guidas deserdadas, ignoradas nos álbuns de família, lançadas à pobreza extrema e até à prostituição. Como diz a canção de Luiz Melodia, “uma mulher não pode vacilar”. A pena imposta às desobedientes é dracônica. A situação lembra de pronto do que ouvi, durante uma reportagem na casa de passagem para mulheres em situação de rua, mantida pela Fundação de Ação Social. Mais de uma interna disse, a seu modo, que os parentes perdoavam um homem que perdeu tudo para a bebida ou para as drogas. Para eles, o direito ao recomeço. Mas raramente esses direitos são preservados quando as recaídas vêm de uma mulher. Os depoimentos das moradoras de rua não diferem dos registrados, também em reportagem, junto a adolescentes que cumpriam medida socioeducativa em centros especializados da Secretaria de Estado de Justiça. Para elas, retomar os sonhos planos e sonhos exigia fôlego duplo. Tinham, afinal, amado o homem errado. E se sentiam sem perdão.
Tenho cá para mim que A vida invisível... traduz o tal do zeitgeist. As mulheres de hoje desenvolveram uma solidariedade implícita e explícita às mulheres de ontem. Andam de antenas ligadas, de modo a captar silenciamentos. Não acham graça de piadas que naturalizam o machismo. Protestam quando se desconsidera o que passaram as que vieram antes – das famosas Camile Claudel, Dora Maar e Frida Kahlo às Carolinas de Jesus e demais anônimas. O conceito de sororidade é um alento no século 21, e torna sensíveis as narrativas de injustiça que estavam envernizadas.
Como todos os oprimidos, as mulheres desenvolveram sua desobediência civil. Tal como os negros e negras. O operariado. Os invertidos e invertidas
Exemplo de histórias maquiadas? Eurídice sofre
violência sexual na lua de mel – numa cena tragicômica, é bom dizer, posto que
uma das especialidades de Karim Aïnouz é subverter expectativas. Aposto o
pescoço que, ainda que de maneira sutil, quase todo mundo sabe de episódio
semelhante entre os seus. A essa agressão, somem-se informações privadas sobre
mulheres que deixaram de estudar por ordem dos maridos, que apanharam, que
foram roubadas por seus parceiros. A lista de agressões domésticas históricas não
cabe numa página, mas é bom lembrar que, como todos os oprimidos, as mulheres
desenvolveram sua desobediência civil. Tal como os negros e negras. O
operariado. Os invertidos e invertidas.
Um dos baratos de A vida invisível..., e espero estar certo no meu palpite, é que desperta não só narrativas doídas, nascidas da sororidade com as mulheres de um dia. O filme também inspira relatos sobre o que elas fizeram com o fel que lhe deram. Como orquestraram as rebeliões do cotidiano. Não é justo reduzi-las ao papel de vítimas, como se não tivessem reagido. Eurídice e Guida – qual nossas avós e tias – padecem, mas gritam, manipulam, alfinetam, dão o troco, infernizam, fazem o diabo a seus algozes. Em alguma medida, o filme de Karim Aïnouz tem seu lado Bacurau, que não vai chegar nem perto do Oscar. Por duas horas calorentas sofremos com o que vemos acontecer no seio da família horrorosa das protagonistas. Mas também rimos do ridículo masculino, expresso no marido sem luz vivido por Gregório Duvivier. A trama toda faz justiça ao passado. Reforça todos os “bastas” a serem dados no presente. Palmas. E palmadas, se preciso for.