José Carlos Fernandes

Alvaro Posselt, o poeta operário

José Carlos Fernandes
30/12/2018 20:00
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Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Há quatro anos – quando decidiu assumir o papel de poeta em tempo integral – o curitibano Alvaro Mariel Posselt, 47 anos, trabalha feito um estivador. Esqueçam, caros leitores, aquela velha opinião formada sobre tudo. Poetas – ao menos os da cepa de Alvaro – não vivem reclusos em templos, com punhos de renda, às voltas com musas temperamentais; ou ressentidos com o pouco caso da massa ignara. Ralam pra diacho, debaixo do apito da fábrica. “Sou um operário”, resume o autor de seis livros, mais de 15 mil exemplares impressos e pelo menos uma centena de atividades em escolas. Em cada sala de aula em que entra, batata, recolhe o mesmo olhar de espanto dos alunos, ao saberem que existe poeta vivo.
“Em casa eu ralo, / me empenho. Eu até tenho / que acordar o galo”
A rotina de Posselt não é para amadores. Mantém várias bolas no ar ao mesmo tempo. Num único dia, pode dar duas-três oficinas de haicais – sua especialidade – em colégios distantes 4-5 léguas um do outro. À noite, para não perder a forma, bate ponto num evento literário ou coisa que valha. Nos intervalos, dialoga nas redes com seu grupo virtual, comunidade que beira hoje 70 escritores, artistas visuais e simpatizantes, das mais diversas tribos e, ai, ideologias. Não raro, recebe parte da turma no sábado ou domingo para uma roda informal de cultura, no quintal de sua residência no Pilarzinho. O local, de tão original, ganhou o apelido de “a casa do poeta”. Não a Casa do Poeta Trágico, de Pompeia, atingida pelo Vesúvio. Ali tem mesa a gosto para toda gente, ao lado da churrasqueira ou em riba do forno de pão.
Semana passada, quem o achou meio sumido do mapa logo soube do paradeiro: estava na Ocupação Tiradentes, na CIC, pondo crianças e adolescentes para escrever poesia depois de verem o fogo consumir a vila improvisada onde viviam. Exato – aonde vai o bombeiro, o policial, o ativista de direitos humanos, o técnico da Cohab também deve ir o poeta. Assim tem sido desde 2014, quando seus versos foram parar nas paredes da Travessa da Lapa, no Centro da capital paranaense. A história de Alvaro é um antes e um depois disso.
Foi meio que ao acaso. Posselt – então professor particular de português para estrangeiros – teve acesso aos microlivros de poesia publicados pela Associação Condomínios do Brasil (ACGB), ONG que atua na zeladoria do Centro e cercanias. Dentre os autores da coleção, distribuída com o intuito de popularizar as letras, está a veterana Adélia Maria Woellner, de quem viria a se tornar amigo. O contato com a organização saiu melhor que a encomenda. Alguns poemas de Alvaro foram grafitados na travessa, pela qual pelo menos 65 mil pessoas cruzam todo dia, a bordo dos biarticulados da linha Capão Raso-Santa Cândida. Aconteceu.
Os versos sobre Curitiba, em especial, caíram no gosto dos passageiros. Havia quem os fotografasse da janela do ônibus, compartilhando-os em escala industrial. Em segundos, ganharam versões apócrifas, releituras e autorias suspeitas. Era como se cada vivente que passava nas estações de tubo soubesse dizer: “Curitiba não nos poupa / ontem eu tomei sorvete / hoje eu tomo sopa”, para citar um. A fama súbita do poeta rendeu matéria na tevê e coisa e tal, o empurrão que faltava para Posselt assinar sua própria carta de alforria, despedir-se dos alunos e se declarar poeta de segunda a segunda, nem sempre com folga para o almoço. Tá lá no perfil do Face e onde quer mais que seu nome apareça.
Fosse pela ordem natural das coisas, Alvaro não seria gauche na vida. Nasceu numa casa sem livros, de uma família que circulava entre o Portão e a Vila Isabel. Perdeu o pai ainda moleque, o que significou que teria de trabalhar cedo, para ajudar nas despesas. Mal apontaram os primeiros fios de barba austro-polaca, o guri arrumou emprego no escritório da Osten Ferragens. Ali conheceu Gilmar Marcondes, o colega de firma que lhe apresentou aos livros. Um dos primeiros, o best-seller Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach; passando para A revolução dos bichos, de Orwell, até chegar a O velho e o mar, de Hemingway. Na sequência, seu influenciador o motivou a fazer carteirinha na Biblioteca Pública, da qual se tornou freguês. “Quando me dei conta, estava lendo no intervalo. E escrevia poesia, para descontar a timidez e conseguir namorada”.
Até que a dupla decidiu “aprontar”: nos 18 anos de Alvaro, Marcondes juntou os pauzinhos, como se dizia, e conseguiu levar o amigo ao apartamento da poeta Helena Kolody, na Praça Rui Barbosa, para um café da tarde. Foi como uma Aparição da Virgem. Ganharam chocolate e cerveja, mas deu tudo certo. Saiu de lá com um livro autografado e a certeza de que tinha encontrado o que queria fazer dali em diante. Na sequência veio a faculdade de Letras, um breve estágio como professor da rede particular e a opção pelo ensino de língua para estrangeiros. Fez grandes amigos ao lhes apresentar a gramática, sua paixão confessa. Deles, em troca, recebeu notícias do mundo e começou a esboçar não só seu projeto literário, como um projeto de militância em prol das artes, o que só faz progredir.
“No meio da horta / pisca a última faísca / da estrela morta”
À revelia da imagem de que para ser poeta é preciso ter um pacto com a porra-louquice, Alvaro faz o tipo organizado. Tivesse ido para uma corporação, faria misérias. Para quem não o conhece, a única pista de que se trata de um artista radical está nos inseparáveis chapéus com aba e nos sapatos vintage – que simulam as polainas. De resto é cordato, reservado, solene e agregador como um egresso do Iesde. Num estalar de dedos, reúne gente em torno de suas propostas, de modo que sua lista de parceiros é tamanha que nem lhe cabe o nome de confraria.
É com a turma que fala sua língua que trama fazer de Curitiba uma espécie de capital brasileira da poesia. É a cidade de Paulo Leminski, Alice Ruiz e de dona Helena, afinal. As oficinas dadas nas escolas fazem parte do cronograma. Para 2019, pretende transformar parte da casa do Pilarzinho em local para produção e declamação de poesias. Nos 420 metros quadrados, instalados num fundo de vale banhado por um riacho, vindo da Universidade do Meio Ambiente, construiu sacadas, pérgulas e o que mais. São cenários perfeitos para os saraus. “Meu sonho é receber as Marianas aqui”, adianta, sobre o grupo de mulheres que agita o circuito local de poesia.
Paralelo, Posselt estuda comprar uma van, adesivá-la, construir dentro dela aposentos e sair pelo estado… oferecendo oficinas. Depois de mais ou menos 1,5 mil dias em que circulou pelas escolas da capital, entende ter chegado a hora de romper os limites municipais. Melhor não duvidar. Na contramão do vale de lágrimas em torno da literatura – e esse sofrimento não lhe é estranho (“Lá vem o vento / derrubando / tudo que invento”) –, o poeta insiste em catar papel na tempestade. Não mostrou a língua para fazer da vida uma ata da Câmara Municipal.
Tem lá seus elixires para não sucumbir ao desânimo. À noite, em seu recanto quase escondido, vê vagalumes, escuta canto de cigarras e coaxar de sapos, além da passarinhada. Não raro, grava a sinfonia e manda para sua rede. É verdade que vez ou outra algum alarme estraga a música, mas nada que lhe tire do sério. Outra prática – olhar as estrelas, ou, no nosso caso, as nuvens. No seu quarto de dormir a janela fica no teto, o que lhe permite ver o céu. Nessas horas de descanso, vai nascendo sua poesia, sem atropelos. Em 2019, vem mais uma fornada de haicais por aí. E a certeza de que veremos o poeta de chapéu coco em algum ponto da cidade, pronto para dizer “sim”.
“Com a ponta do giz / marquei meu destino / Ser um eterno aprendiz”