José Carlos Fernandes

Aos jornalistas que estão no front

José Carlos Fernandes
05/04/2020 19:00
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Em uma visita ao Brasil, dez anos atrás, o decano do
jornalismo mundial, o norte-americano Gay Talese, saiu-se bem diante da
investida de um repórter, excitado em arrancar do escritor – um dândi que usa
lenço na lapela – impressões sobre sua maior especialidade. Indagado a respeito
dos pecados da imprensa, usou de uma metáfora como resposta. Houvesse dois
prédios, um deles ocupado por jornalistas e outro por qualquer outra categoria
profissional – advogados, por exemplo –, ficaria no prédio dos jornalistas.
Motivo? Por pior que fosse o grupo, noves fora, ali estaria um bom número de
pessoas ocupadas da verdade.
A imprensa, a Igreja, o exército, a educação, a
medicina..., pouco importa. A todas as instituições que costumam figurar no
topo das mais confiáveis cabe o título do célebre filme estrelado por Marilyn
Monroe, em 1956 – Nunca fui santa. O
jornalismo tem pecados, e são muitos, mas onde estiver uma equipe de repórteres
haverá ali quem esteja ocupado do fato noticioso, pois desse barro são feitos.
Não é por causa dos bêbados que se deve jogar todo o vinho fora, como reza o
ditado.
A quem não é do ramo, posso garantir – poucas corporações são tão críticas à própria atuação quanto os jornalistas. No interior das redações há cabos de guerra constantes. São guerras feitas de mãos espalmadas na mesa dos editores, seguidas de frases nem sempre publicáveis. Esse tête-à-tête é privilégio de um dos ramos de ação ainda bastante horizontal, graças aos deuses. O repúdio às más práticas pode beirar a crueldade, tamanhas são as idealizações em torno dessa atividade. É como se todos os dias filmássemos um Montanha dos Sete Abutres para colocar em fogo alto as nossas escorregadas. Nem sempre merecem perdão.
O jornalismo tem pecados, e são muitos, mas onde estiver uma equipe de repórteres haverá ali quem esteja ocupado do fato noticioso, pois desse barro são feitos
Acho um barato, ainda que equivocada, a analogia da
imprensa com uma frase conhecida: “Se soubéssemos como são feitas as salsichas,
não as comeríamos”. Pois “se soubéssemos como são feitos os jornais, não os
leríamos”. No sentido contrário, diria que é a moagem de tantos elementos que
faz das notícias um dos produtos mais notáveis do mundo moderno – e não sou eu
quem diz, mas Eric Hobsbawm.
Costumo repassar aos estudantes de Jornalismo um
texto antigo do psicanalista Contardo Calligaris, um peru de fora que melhor
nos compreendeu. O título é “Para que servem os jornais?” e foi publicado por
ocasião da queda do avião da TAM 3054, em 2007, na cidade de São Paulo.
Calligaris se surpreendeu que, no dia seguinte ao acidente que matou 199
brasileiros, várias pequenas histórias das vítimas saíram publicadas aqui e ali.
Pergunta-se a que horas aquilo pôde ser apurado – e a resposta é “na madrugada”,
quando a fuselagem nem sequer tinha esfriado.
Lembrei do texto mais uma vez ao ver reportagem de Rafael Balago, publicada na Folha de S. Paulo, com portraits de pessoas mortas no mundo todo em decorrência do coronavírus. Fiquei conhecendo a enfermeira italiana Daniela Trezzi; a cientista política filipina Aileen Baviera; o saxofonista camaronense Manu Dibango, de cuja existência não fazia ideia. Alguém escreve esse livro das vidas – e são repórteres, a quem, até pouco tempo, os aprendizes de tirano e os tiranos de fato chamavam de pé-de-chinelo ou pé-rapado, pela humildade de uma função exercida com uma caneta, um bloquinho de papel e um par de sapatos Vulcabrás.
Em miúdos, quando o avião cai, a imprensa está lá
para lembrar que numa tragédia se perdem pessoas comuns – um que gosta de
macarrão, outro que tocava violino, um que era gay, a moça que estava para se
casar, a idosa que viajava sozinha, adolescentes apaixonados... Quando Gabriel
García Márquez cunhou a expressão “a mais bela profissão do mundo”, não estava
brincando em serviço.
Confesso que mesmo depois de queimar fosfato, anos a
fio, em estudos sobre o que passa na cabeça do público de mídia, ainda me
surpreendo com o imperativo da visão primária. Tem quem defenda aos berros que
o papel dos meios de comunicação se limita a “divulgar” e “trabalhar pelo
Brasil”, entre demais baboseiras adestradoras, saídas da mente estreita dos
péssimos alunos. Trata-se de uma concepção ingênua, cujas origens estão no
início do século 19, quando se constitui a primeira lavra da intelectualidade
brasileira.
Formada à cata das migalhas caídas da mesa da Corte Portuguesa, a elite pensante se mostrou bajuladora, dependente do Estado e fadada a defender as causas nacionais, feito boba, papagaiando com citações em latim as causas que garantiam a manutenção da desigualdade, esse gigante pela própria natureza. Ora, uma parcela da intelectualidade permaneceu nas rebarbas do poder, mas outra, significativa, moldou um país de cultura notável, nas artes e nas ciências. Fundou universidades. Formou uma das maiores literaturas do planeta. O intelectual nacionalista está preso a um repertório mofado, que só encontra entusiastas no atual grupo aloprado que está no poder.
Alguém escreve o livro das vidas – e são repórteres, a quem, até pouco tempo, os aprendizes de tirano e os tiranos de fato chamavam de pé-de-chinelo ou pé-rapado
Detalhe: faziam parte desse grupo nascente professores,
escritores e jornalistas – não raro um “três em um” praticado pelas mesmas
pessoas. Mais de dois séculos depois, a imprensa é, em essência, outra. Passou
por várias idades e não faz feio diante de mídias de grande tradição, como a anglo-saxônica.
Tudo bem, você está lembrando agora dos programas policiais de televisão, dos
sites sanguinolentos, do vale-tudo dos blogs. Pois é ofensivo chamar essas
práticas de imprensa e mídia. Melhor olhar para a imprensa que cobre a pandemia
de coronavírus – humana, demasiadamente humana.
Estou sendo parcial? Sim, no grau máximo. E para não
deixar dúvidas sobre minha falta de modos, confesso que já ameacei me atirar de
um carro em movimento, incomodado com a fala de um dos passageiros. Descia o
sarrafo na imprensa, acusando-a de bandida e salafrária, usando de uma cascata
de adjetivos dignos da mãe Joana. Mas os dados que usava para a pesquisa que
fazia tinham sido galgados por repórteres, que para consegui-lo enfrentaram
secretárias saídas de filmes de terror e burocratas preguiçosos que passavam
base nas unhas. Desaforo.
Mais. Já fui às falas com um amigo padre, ao saber que tinha aconselhado no sermão os fiéis a não lerem jornais. Desculpou-se. Orquestrei muito pega-pra-capar por causa de críticas gratuitas e tenho certeza de que a rotina dos outros jornalistas também é povoada de episódios semelhantes. Não se trata de defender erros, mas de não deixar barato as injustiças gratuitas dos que fazem de nós a Geni – feita para apanhar, boa de cuspir. Vida de repórter é checar e checar, e publicar o que pode ser publicado. Não tem o glamour da bancada do Jornal Nacional. É estiva. É mover o mundo na base das perguntas de interesse da dona Maria e do seu José.
Em tempo, um dos cacoetes mais irritantes dos opositores de plantão é dizer que “isso a imprensa não dá”, justo porque naquele dia da semana ele não encontrou uma notícia fresca sobre... a expedição da Apollo 11. Nessas horas o Google ajuda – a gente prova no ato que o vivente não sabe do que está falando. A empreitada contra o obscurantismo dos que não seguem a boa imprensa, mas juram que seguem, é quase sempre sem sucesso, concordo: a ignorância soberba se tornou uma epidemia no país, antes mesmo da Covid-19.
***
Há quatro anos estou fora da linha de frente na
cobertura. Mas o que vi e vivi em três décadas de imprensa diária é o bastante
para imaginar o diabo que os jornalistas estão passando nas últimas semanas. Nossa
atuação pode não ser comparada à incerteza diária que assombra os profissionais
de saúde – eles merecem saraivadas de aplausos e silvos. Mas está perto disso.
A Covid-19 não se rende a padrões, resiste a análises lógicas, desafia as
estatísticas. Sabe-se muito sobre a doença, mas não se sabe aonde ela vai
parar. Pior – os veículos de comunicação demitiram 40% do seu corpo de
profissionais, o que leva quem ficou no front
a atuar no osso.
A informação científica de qualidade precisa ser
galgada ao mesmo tempo que as chamadas “matérias de serviço” – informações
sobre como limpar a casa, dicas para distrair as crianças, correntes de solidariedade
à espera de apoio. Por aí vai o baile. Neste momento, milhares de jornalistas
estão pensando em como contar às pessoas de forma clara aquilo que é complexo.
E pensar que é essa capacidade divina de democratizar o saber que muitos dos opositores
da boa imprensa querem reprimir. Como se fosse possível haver uma sociedade
moderna, rica e organizada sem a imprensa. A quem quer que duvide, que se
prepare para a barbárie.