José Carlos Fernandes

Artistas e semideuses

José Carlos Fernandes
09/02/2020 19:00
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“Procuro a repórter Ana Karina Sato”, informou a mulher do outro lado da linha. A voz me parecia familiar – parecida à que ouvia nos capítulos de Selva de Pedra (primeira versão, rs) e Rainha da Sucata. Disse que a Ana tinha encerrado o expediente. E se podia ajudar. “Pois é, meu nome é Regina Duarte e perdi o horário da entrevista com a Ana Karina...” Foi engraçado. Uma das maiores atrizes brasileiras telefona para se desculpar pelo atraso, oferece-se para vir à redação e se dispõe a atender a jornalista em qualquer horário. Na lógica de imprensa, estaríamos sentados no meio-fio da rua do hotel, às 3 da madrugada, se a Regina Duarte assim pedisse.
Não foi a única aula de
antiestrelismo que presenciei nos tempos de jornalismo cultural. Na mesma
redação, bem cedinho, Glória Menezes, também de voz inconfundível, ligou certa
ocasião para agradecer pela matéria que demos sobre a linda peça Jornada de um poema. Sua gratidão era a
mesma dos leitores comuns. Em outra feita, vi Renata Sorrah sentada no chão,
dando entrevista de mãos dadas com duas jovens repórteres que estavam meio
perdidas sobre o que escrever a respeito da peça Mary Stuart, de Schiller, estrelada por Sorrah e Xuxa Lopes. E, meninos,
eu também vi a temida crítica de teatro Bárbara Heliodora – referência
incontestável na obra de Shakespeare – não se importar de informar a uma
jornalista atrapalhada o básico do básico, inclusive que escrevia sobre...
teatro. Era como se dissesse: “Sem problemas, você não tem obrigação de saber
quem é Bárbara Heliodora”.
No quesito “não me levo tão a sério assim”, aplausos para Adriana Calcanhotto e para a atriz Leona Cavalli – então às voltas com sua versão admirável de Blanche Dubois em Um bonde chamado desejo. Ambas circularam entre as mesas da reportagem como se estivessem fazendo divulgação da Festa do Pêssego e do Ovo de Araucária. Foi bacana – sempre que vejo as duas na mídia, lembro da aura dessas mulheres pequenas, movidas pela despretensão.
Como pode uma artista se colocar ao lado dessa turma, que ama mais os jet skis da Barra da Tijuca do que a arte elaborada e a liberdade de expressão?
Dos muitos episódios
semelhantes que presenciei, em que gigantes se mostraram humanos,
demasiadamente humanos, nada me pareceu mais espetacular do que o ocorrido com
o cantor e compositor Jair Rodrigues. Foi no início dos anos 1990. Em visita à
redação, para uma entrevista, Jairzão perguntou ao repórter em que lugar
ficavam as zeladoras do jornal. A sala das “tias da limpeza”, nos tempos em que
essa expressão inadequada estava livre de patrulhas, funcionava num puxadinho,
atrás do barracão da impressão. Pois o artista foi até lá e cantou Disparada para elas. “Prepare o seu
coração, pras coisas que vou contar...” Imaginem a cena. Parou tudo. Com
exceção da Maria e da Dorvalina, todas as mulheres da plateia improvisada entre
baldes e rodos eram negras como Jair. Ao final da palhinha gratuita, muito abraço,
beijo e aquele festerê que só os fãs sabem fazer. Os trejeitos de Rodrigues
coloriam a cena, dominada pelo azul piscina do uniforme das zeladoras.
É evidente, a
convivência com artistas, dos mais diversos naipes, vai da glória ao açoite.
Alguns nutrem uma relação ácida e defensiva com a imprensa. Paulo Autran, um
dos césares do teatro brasileiro, e que andou muito por Curitiba décadas atrás,
tinha o nome de uma repórter na ponta da língua. Não a queria por perto e lhe
soltava impropérios gratuitos. Um bullying
refinado.
Recorro a essas passagens – tão inspiradoras quanto amargas – para explorar o sentimento dúbio causado pela escolha da atriz Regina Duarte para a pasta da Cultura do governo Jair Bolsonaro. Os que ressentiam de Regina desde os tempos do famoso “tenho medo”, frase que disse em cadeia televisiva, numa referência à candidatura de Lula, reforçaram a artilharia pesada contra a “namoradinha do Brasil”. Em mais esse episódio do sanatório geral em que se transformou o país, o impacto veio a jato: diminuiu a intérprete de Simone, Malu, Porcina, Maria do Carmo, Helena e Chiquinha Gonzaga e cresceu a mulher que se aproxima do terreno sombrio da censura, dirigismo e fascismo disfarçado de nacionalismo – script da atual governança.
Nas entrelinhas, fica a
pergunta: como pode uma artista se colocar ao lado dessa turma, que ama mais os
jet skis da Barra da Tijuca do que a arte elaborada e a liberdade de expressão?
Há uma expectativa moral em torno dos que leem, atuam, interpretam – a de que a
arte os tenha tornado bondosos, equilibrados, magnânimos, mas essa fórmula
equivale a uma falácia.
A arte, em tese,
deveria existir para nos tornar pessoas melhores, o que inclui, sobremaneira,
os que estão mais próximos dela. Os artífices e os intérpretes seriam um
exemplar master plus gold do poder
transformador da cultura. Confesso que por muito tempo rezei nesta cartilha,
mesmo percebendo que era palha. Mais de uma vez, diante de algum entrevero com
artistas, eu me via lamuriando como aquelas pessoas talhadas por Beckett,
Goethe, Balzac e o escambau poderiam se mostrar tão mesquinhas.
Ser chamado de “jornalistazinho” por uma delas já nem causava cócegas. O termo é usado por todos os públicos, quando querem dizer que o repórter não representa nada na fila do pão. Reforço que, na minha experiência, eram oito artistas batutas para dois que se julgavam a prima donna do Scala de Milão. Não descarto que as críticas de muitos dos mais ariscos fossem pertinentes, mas era de morrer quando uma carta de algum deles chegava à direção, pedindo nossa cabeça. Quando esse tipo de atitude sacana partia de um político ou de um empresário, não causava espanto. Muitos nos desejavam em alto e bom som que tivéssemos câncer e que nossos filhos morressem num acidente de carro. O que era perder o emprego no meio desses mais sinceros votos? Mas, quando o mesmo repertório partia de um artista, a crença na humanidade beijava a lona.
A protagonista de Malu Mulher, um marco feminista, a atriz que luta para romper a censura contra a novela Roque Santeiro, também pode ser a que se alia a um governo que arrisca enterrar sua gloriosa carreira de mais de 50 anos
O esforço – e permitam
usar a Regina Duarte como exemplo – é entender que a estrela que, sem afetação,
liga para a redação atrás de uma repórter; a protagonista de Malu Mulher – um marco feminista –; a
atriz que luta para romper a censura contra a novela Roque Santeiro – e se torna protagonista na tela e fora dela –,
também pode ser a que se alia a um governo que arrisca enterrar sua gloriosa
carreira de mais de 50 anos. A contradição não é privilégio de Regina Duarte –
é um prato que comemos todos os dias. Não tem artista no mundo vacinado contra
esse risco. A piada mais famosa a respeito envolve a atriz Rita Hayworth, que alucinava
os homens na pele de Gilda. A feroz Ava Gardner era uma Filha de Maria perto
dela. Dizia-se de seus namorados, desiludidos, que dormiam com Gilda, mas que acordavam
com Rita Hayworth. É autoexplicativo.
Uma das teorias que me
ajudaram a perder a inocência está no livro Como
e por que ler
, do polêmico crítico literário norte-americano Harold Bloom,
morto em outubro passado. Num texto inspirado, Bloom argumenta que o consumo da
cultura – seja ela teatro, literatura, cinema, artes visuais... – é um
exercício de alteridade. Alivia a solidão. Coloca-nos em contato com seres
imaginários, que habitam outros mundos que não o nosso, que vão a lugares aonde
não teríamos coragem de ir. Ao contrário de apaziguar, ensinar e mesmo
domesticar, a experiência estética tem sobretudo o poder de acordar nossos
demônios e projetar nossas sombras. Ninguém deve ir a uma exposição de arte
para se tornar uma pessoa melhor, mas para pôr os olhos a perigo. Por aí vai.
Um dos maiores equívocos, inclusive, é creditar à arte uma fundação pedagógica, o que trai de cima a baixo a sua natureza febril. Arte é para despertar fome, não saciedade. Podemos ver nossa natureza num vilão, por exemplo. E não necessariamente deixar de sê-lo porque lemos um livro. Trata-se um território de intimidade, um jogo de espelhos que não está ali para termos o que dizer numa mesa de jantar – mostrando-nos ilustrados, – mas para mostrar quem somos.
A contradição não é privilégio de Regina Duarte – é um prato que comemos todos os dias
A prática da cultura,
em resumo, incide mais sobre nossos travesseiros do que sobre as práticas
sociais. Bloom, ao nos assaltar com sua fúria verbal, me ajudou a amar ainda
mais os artistas – inclusive os dados a chutar canelas. Simpáticos ou não,
viajam com mais frequência a lugares perigosos, nos quais nunca nos arriscamos.
Estão sempre em carne viva, dançam tango na escuridão. Nenhuma jornada que
encaram os torna por si só um titã, um semideus ou coisa que valha. Transitam
no abismo entre conteúdo e forma, para graça ou desgraça nossa e deles.
PS.:
Acho que Regina Duarte entrou numa roubada. Por todos os motivos e mais um. No
divertido livro Pense como um artista,
o crítico de arte britânico Will Gompertz diz o óbvio. O capital mais precioso
para o artista é o tempo – ele necessita de dinheiro para comprar as horas e
horas necessárias para criar. Raros os que suportam as funções burocráticas.
Elas lhes roubam o tempo e, sem o tempo, deixam de ser artistas. Elementar.