José Carlos Fernandes

As jornadas de Jordan

José Carlos Fernandes
22/12/2019 20:00
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O médico curitibano Jordan Zanetti Silva, 52 anos, é
dado a testar limites. Na trajetória acadêmica, fez o que parecia impossível:
cursou Medicina e Direito ao mesmo tempo, amargando mais de seis anos de insone
jornada tripla. Não sabia o que era um fim de semana. Acostumou-se a ter poucos
amigos e a não dar folga para conversa fiada. Por pouco não pirou. No auge de
sua maratona estudantil, chegou a ir à padaria com uma schooner – assustado com um noticiário sobre temporais na cidade.
Encasquetou que seria atingido por uma enchente, botando o pão quente a perder.
O mico foi seu grito de alerta. Estava no borderline
– mas seguiu teimando. “Foi o período mais sombrio da minha vida”, lembra o
espartano.
Formado, permaneceu fiel a si mesmo. Onde havia
fronteiras, lá estava ele. Bateu cartão por duas décadas no pronto-atendimento
do Hospital Erasto Gaertner, o “hospital do câncer”, como se diz. Uma lenha. Atendia
intercorrências provocadas por quimioterapia, termo que dispensa explicações. Não
raro, ao tirar o jaleco branco, debruçava-se sobre o capô do carro, exausto, e
recapitulava a jornada da eternidade e um dia experimentada no expediente. Mas
que nada – lá pelas tantas, paralelo, se empregou no Serviço de Atendimento
Móvel de Urgência, o Samu. No turno da noite, pois emoção pouca é bobagem. O
trabalho – a nervos expostos e no qual permanece – é uma de suas paixões
confessas. A rotina nas emergências não impede que, depois de tudo, saia às
cinco e pouco da madrugada para correr dez quilômetros, três vezes por semana,
sem refresco. Se estiver chovendo, melhor. “Adoro”, conta.
Há pouco mais de um ano, Jordan decidiu fazer um check-list da carreira e percebeu que ainda não tinha cumprido todo o juramento de Hipócrates. Poderia ir ainda mais longe, bem perto do osso. “A gente brinca que muitos médicos conhecem seus pacientes pela mucosa, mas não pelo rosto”. Queria a vertigem da alma. Foi quando se habilitou para uma vaga de clínico geral na Secretaria de Estado da Justiça. Interessava-lhe um estágio no sistema prisional, mesmo com salário aquém e a iminência de um ataque de nervos.
Raro quem tenha visto de perto um centro de ressocialização e ainda defenda com a boca cheia a redução da maioridade penal
Aprovado para a vaga, viu-se convocado a atuar no
Centro de Ressocialização Joana Richa. Aos pouco habituados com a nomenclatura,
os “Censes” – como são chamados os centros – abrigam adolescentes em conflito
com a lei. No jargão técnico, são meninos e meninas que cumprem medidas
socioeducativas. Dizer que estão presos é errado na perspectiva do Estatuto da Criança
e do Adolescente, o ECA, mas os Censes têm celas com cadeados, como qualquer
outra cadeia. Raro quem tenha visto um desses locais de perto e ainda defenda
com a boca cheia a redução da maioridade penal. A não ser que tenha parafusos a
menos na cabeça e nenhuma mola no coração.
O Joana Richa – plantado numa linda rua sem saída do
bairro Mercês – é a única unidade do gênero destinada ao público feminino. O
local abriga 34 adolescentes, se é que assim podem ser chamadas. Aos 14-15
anos, muitas delas já viveram três vidas. São como aquelas personagens do
cinema noir, de postura agressiva e
olhar intransponível. Atuar ali não é para amadores. “Acho que a maioria dos
meus colegas de profissão não faz ideia do que se trata. Muitos não suportariam
uma semana. Eu achei que não iria aguentar”, admite, sobre a vontade que teve
de botar sebo nas canelas e fugir... no primeiro dia. Do alto de 1,85 metro,
poucos quilos, voz gutural e sua feição picassiana, Jordan ficou imobilizado
assim que pacientes deram de lhe contar as jornadas que fizeram ao inferno. “Não
imaginava que doía tanto...”, resume. O susto não passou de todo. Mas o curativo
veio ao se dar conta de que o Joana Richa fez com que se sentisse “mais médico
do que nunca”.
Causam impressão, é claro, as tramas policialescas que as meninas contam. São pontuadas por amores bandidos e enredos que tornam as crônicas de Nelson Rodrigues história para ninar criancinhas. Certa vez, uma guria de 14 anos lhe fez um pedido – que entrasse em contato com a mãe dela, para que lhe trouxesse uma boneca que tinha deixado em casa. “Crianças apreendidas, não é natural”, repete Jordan. Vê-se num cipoal. São de fazer beijar a lona as narrativas sobre abusos praticados por pais, padrastos, irmãos e vizinhos. Não bastasse, experimentaram o abandono familiar, praticado no extremo da crueldade. Acrescente-se a essas contas de menos a escolaridade sofrível. Resta a cada escuta a incômoda convicção de que as internas têm mais chagas abertas do que a medicina pode curar.
Saldo? Muitas gurias falam sem remorso sobre o que
as trouxe para a unidade de ressocialização. Tem assalto à mão armada. Alguns
homicídios. Episódios cabeludos. Para algumas dessas garotas, a vida marital se
iniciou quando ainda faziam chiquinhas ou jogavam amarelinha – foram jogadas em
camas nas quais não escolheram estar. As que encontram coragem para contar
sobre seus desertos engatam no choro. Treinado profissionalmente para ficar
distante, Jordan agora é assaltado pela realidade, que lhe passa rasteira.
Não é um conto de fadas. “Todas essas meninas, sem
exceção, nunca vão esquecer o motivo que as trouxe até aqui. Esse motivo
explica a dificuldade que têm de compreensão da realidade. Muitas não conseguem
compreender o valor da individualidade. Sofrem, mas também podem fazer os
outros sofrerem, sem que isso necessariamente lhes cause remorso. Muitas não
conseguem sonhar. São adolescentes que não conseguem ultrapassar a adolescência”,
avalia doutor Jordan. “Tinha ouvido falar de tudo o que vejo aqui. Vi números.
Mas as estatísticas médicas não têm rosto nem nome”, diz o homem que corre nas
ruas da Água Verde, mas que agora também corre nas ruas de um país obscuro.
Muitas gurias falam sem remorso sobre o que as trouxe para a unidade de ressocialização
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O nome “Jordan” causa surpresa. Rock and roll. Foi escolhido porque o pai do médico era fã do grupo de iê-iê-iê instrumental The Jordans, que fez curta carreira no Brasil dos anos 1950-1960. Durante a maior parte do tempo, sobrou-lhe pouca gasolina para fazer jus ao espírito pop de seu nome e arrombar as portas da percepção. Fez-se um operário de estetoscópio. Um mecânico munido de máquina de medir pressão. Até que há quatro anos os ventos sopraram ao contrário.
Entendeu que tinha passado a maior parte da existência às voltas com pacientes depressivos, assombrados pela morte próxima. Na outra parte, passou atolado pelos labirintos jurídicos. “Sabe o livro do Kafka [O processo]. O direito é exatamente isso...”, explica. Ganhou impulso o súbito interesse por conhecer melhor as patologias mentais. Queria estar com os que carregavam sofrimento psíquico. Lembrou das lições de “empatia” com os pacientes, aprendidas na faculdade de Medicina. Começou ali a recompor o médico. Descobriu-se um bom ouvinte, um investigador das zonas escuras. “Faço brincadeiras, para me aproximar um pouco mais. E olhe que, no geral, não sou assim tão simpático...” Vai bem, obrigado. Tem visto outro sujeito no espelho. Dia desses, uma garota do Cense reclamou de dor de cabeça. Arrumou-lhe um paracetamol. Ela lhe agradeceu, como se tivesse sido curada de uma doença terminal. Nunca pensou que, depois de ter atuado na oncologia, fosse sentir alegria num procedimento tão simples, tão próxima.
Quando é possível, faz uma pergunta bem elementar às adolescentes – quer saber delas o que entendem pela palavra “amor”. As respostas oferecem pouca variação para o tema. Amor, para elas, é quase sempre sinônimo de transa, e transa destituída de qualquer romantismo. Amor também remete às mães – ou à falta delas. É o que basta para que o assunto mais repetido da humanidade – esbanjado na novela, no cinema e na canção – vire seu laboratório para entender até onde pode levar a ausência dos afetos. Como se diz? “Obrigado, doutor.”