Redação

Atrás dos muros do asilo

Redação
11/08/2019 18:00
Thumbnail
A cena é incomum para a maioria dos mortais. Numa manhã de sexta-feira, o padre José Aparecido, 61 anos, chama quem está por perto para rezar por dona Rosa, uma idosa enferma. Forma-se uma concha em torno dela. O sacerdote ministra ali – sem pompa – a unção dos enfermos, sacramento destinado aos que estão a dois passos de se mudar para o lado de lá. Rosa passou dos 80 anos e vive no Asilo São Vicente de Paulo – instituição plantada na divisa de dois dos metros quadrados mais caros de Curitiba, os bairros do Cabral e do Juvevê. Está numa cama de hospital, agarrada a uma boneca de pano. Ela abre os olhos. “Fazia muito tempo que não reagia”, sussurra uma das funcionárias da instituição, antes de procurar um canto para chorar. “Hoje é dia de São Joaquim e Santa Ana, os pais de Nossa Senhora, Dia dos Avós”, ilustra padre José, com a mão na testa da pequenina. Olham-se. Ele é um homem que ama os velhos.
Findados os Pais-Nossos, Rosa é devolvida a sua rotina de espera. A grande casa cor-de-rosa, onde no momento vivem 153 idosas, aos poucos se entrega à própria rotina – ouve-se o barulho das panelas na cozinha, o bater dos tacos no assoalho centenário. “Quem passa aí fora e sabe que aqui é um asilo pensa que vivemos na tristeza. Nada disso”, desafia a assistente social Inês Barbosa. A convivência com as velhinhas não perdoa os sisudos.
Há as moradoras que incorporaram a madre superiora – e não se furtam nem sequer de dar ordens ao padre. Tem as que voltam à infância, na lógica do um ano a mais, um ano a menos. As que viram médicas sem diploma – tamanho o número de receitas que ditam na ponta da língua. Contadoras de história e piadistas? Às pencas. Numa roda pode estar a que foi rica, a professora, a que viveu na rua. Também podem brigar feito meninas do colégio, agarradas aos cabelos, nem que para isso tenham que manobrar cadeiras de rodas. Uma ou outra arrisca mentir, para zoar de um visitante acidental.
“Quem passa aí fora e sabe que aqui é um asilo pensa que vivemos na tristeza. Nada disso”
“Oi, tenho 41 anos. Hoje é meu aniversário”, disse-me uma moradora, assim que atravessei a porta. Dei-lhe parabéns com abraços e disse o que, suspeito, esperava ouvir: “A senhora está ótima para a idade”. A turma da infraestrutura cai na risada quando conto o episódio – por certo uma pegadinha habitual. O São Vicente de Paulo rejeita os tons de cinza, ainda que uma unção dos enfermos possa irromper a manhã. A simples visão das moradoras, secando o cabelo ao sol, no pátio, se encarrega de dizer que a palavra asilo não dá conta do recado. “Elas gostam de bijuteria”, escuto de uma parceira habitual, dentre as 1,6 mil que visitaram o asilo em 2018, sejam parentes ou voluntários. Ali é um “lugar”, com toda a ciência que a palavra guarda.
O São Vicente tem 92 anos e durante parte desse tempo foi administrado pelas irmãs passionistas. Ainda é possível encontrar ali idosas que chegaram meninas, acolhidas pelas freiras. Não conhecem outro endereço senão a Rua São Vicente, 100. Suas trajetórias, claro, são uma ponta afiada de tristeza. Desconhecem pai, mãe, irmãos. Mas não é uma regra. Estima-se que pouco mais de 30 moradoras tenham laços familiares sólidos. Ano passado, foram feitos 999 contatos com parentes, uma lenha.
Boa parte das lendas em torno dos velhos é verdade – são narrativas de tirar o sono e a fé. Há idosos vítimas de violência doméstica, de abandono e exploração por parte de filhos, noras e quem mais. Some-se os deixados às ruas ou na solidão profunda – socorridos por vizinhos que recorreram ao Ministério Público ou que bateram à porta do próprio asilo. “Temos as que envelheceram aqui, e as que envelheceram nos seus apartamentos, sós. Ficam assustadas ao se verem no asilo. Aí vem a cama, o banho quente, o afeto e começam a assumir a casa. Sabe que é bonito?”, diz padre José. A propósito, provoquem-no a falar do dia a dia no asilo – sai-se um senhor contador de histórias, às voltas com a saga de uma moradora, já falecida, que jurava ter sido bailarina do Fantástico. Pelejou para confirmar, sem sucesso. E com uma visita dia desses, com algumas delas, ao Bar do Alemão, no Largo da Ordem – mas sem direito a tomar um “Submarino”, famoso drinque do estabelecimento.
Boa parte das lendas em torno dos velhos é verdade – são narrativas de tirar o sono e a fé
Não se trata, é claro, de um filminho tolo de Sessão da Tarde. O processo de acolhimento segue trâmites que são um espeto. Uma vez vencidos, a recém-chegada passa por uma bateria de exames que pode durar uma manhã. E em média 120 manhãs são necessárias até que vençam o estigma da palavra asilo e relaxem. Os assistentes, psicólogos e administradores que mantêm o local a todo vapor confirmam que a beleza do prédio em estilo eclético – plantado em um quarteirão cercado de jardins – ajuda. As senhoras logo estarão entregues a uma conversa qualquer, à revelia do pacote de comprometimentos emocionais e físicos que trouxeram na bagagem. “Não é um lugar para esperar o fim. Como qualquer pessoa, elas estão em aprendizado. Têm potencial a desenvolver aqui”, defende a socióloga Daiana Sprada, ao listar um sem-número de oficinas desenvolvidas por ali, da tapeçaria à dança.
O
encontro com as profissionais que dividem a lida com o padre José Aparecido
equivale a brincar de rodopio. Elas fazem parte de uma usina – na qual se pode
aprender sobre saúde pública, comportamento, segurança alimentar, reinserção...
“A gente se sente parte de algo importante”, resume a advogada Mônica Freitas, hoje
assistente social. “A vida
das idosas com as quais trabalhamos é a nossa vida amanhã. Aqui está a
humanidade inteira”, resume o padre, diante da empolgação da trupe. Não
dá a última palavra. Mônica se oferece para mostrar cada canto da casa. Os
quartos em que moram de duas a seis idosas. O refeitório tão grande no qual se
poderia andar de patins. A farmácia, com suas centenas de saquinhos de remédio
fracionados, etiquetados, sem chance para erros.
Na farmácia, indiretamente, a lei funciona. Há um serviço contínuo de triagem de medicamentos com validade, na contramão de um dos maiores desperdícios da Terra Brasilis. Em um ano, foram fracionados 326 mil comprimidinhos e congêneres, numa perícia merecedora de prêmio. Como de todo o resto, os números do São Vicente não se contam na ponta dos dedos. Estão todos em relatórios ilustrados e meticulosos, com os quais a administração – levada no pulso por Giceli Stoco, “braço direito e esquerdo do padre José”, como se diz por lá – informa os parceiros o que é feito do que dividem com a instituição.
A simples visão das moradoras, secando o cabelo ao sol, no pátio, se encarrega de dizer que a palavra asilo não dá conta do recado
Um
aperitivo: somando moradoras e funcionários, chega-se a algo próximo de 1,5 mil
refeições por dia – cada idosa come cinco vezes da manhã à noite. O custo total
da casa é a fábula de R$ 500 mil mensais, reunidos com recursos captados pela
Ação Social do Paraná (ASP) – órgão da Cúria Metropolitana gerido pelo padre
José Aparecido –, prefeitura, governo do estado e, sobretudo, pelos chamados no
catolicismo tradicional de “homens e mulheres de boa vontade”. Como não fazer
drama é a regra, todos concordam que o melhor índice econômico do São Vicente é
o “índice fralda”. São em média 18 mil unidades a cada 30 dias. “Quando me
perguntam com o que colaborar, nem espero a frase terminar. Digo ‘fraldas’”,
brinca o padre.
Marcar uma entrevista com o padre José Aparecido exige paciência de Jó. Não que seja esnobe, em absoluto. Sua agenda de trabalho desafia as regras de qualquer RH. É capelão em tantos lugares que mal a gente memoriza. Cuida da economia da Cúria. E da Ação Social, uma ONG que parece não dormir. “Às vezes, estou numa agenda, e o arcebispo me chama”, avisa o sujeito que mais deve subir a Rua Nicolau Maeder nesta cidade. Caso seja difícil mensurar a correria, um aperitivo. No início dos anos 2000, quando o programa Fome Zero era uma das bandeiras brasileiras, a ASP, em proporção, distribuía mais alimentos. Funcionava num mísero pátio de fundos da Igreja do Rocio, no Rebouças. O processo seguia as regras ecumênicas – nas filas de Kombis que levariam frutas e verduras para obras assistenciais se podia ler os adesivos de terreiros de umbanda, centros espíritas, chácaras evangélicas. Pode-se dizer que o pátio do Rocio foi a escola do padre José Aparecido. Uma meia verdade.
José
nasceu e cresceu nas roças de Santa Cruz do Rio Pardo, na divisa do Paraná com
São Paulo. Provou da pobreza – em algumas circunstâncias, extrema. “O olho da
minha mãe dizia se tinha comida ou não”. Ainda menino, passa a morar na casa de
uma família de comerciantes – e a atender no balcão da “Casa dos Dois Mil Réis” – “uma espécie de
Loja do Pedro da minha cidade”. Começou aos 14 anos. Passou por todas as
funções, do atendimento ao controle do estoque e contabilidade. Muito lhe
valeu.
A experiência poderia tê-lo levado às delícias do pecado capital, mas aos 26 anos sentiu o chamado vocacional, como se diz no ambiente religioso. Tornou-se membro da ordem dominicana – uma das mais influentes da Igreja Católica. Mas não foi o que o seduziu. Ainda noviço, José Aparecido e mais seis colegas foram puxar o terço na favela da Taturana, reduto de boias-frias de Santa Cruz. Mal alguém cantou o primeiro mistério e se deram conta de que muitos da comunidade passavam fome. Interrompeu-se a reza para encarar a urgência dos estômagos que roncam, como mandam as regras da misericórdia. O aprendizado do balcão muito lhe valeu para, com os demais, tirar aquela comunidade paupérrima da encruzilhada em que se achava. O terço virou um projeto social de alta voltagem. E José, um gerenciador supimpa da caridade. Receita? Fazer junto. Por isso o padre José Aparecido nunca marca entrevista sozinho. “Ele são muitos”, uma frase torta para uma ideia acertada.