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Ave Lola, melhor não duvidar
| Foto: Albari Rosa / Arte: Felipe Lima

O pequeno espaço cênico Ave Lola – na Rua Marechal Deodoro, 1.227 – está plantado no ponto exato em que o Centro de Curitiba faz divisa com o Alto da XV. Fica a poucos passos do Museu Guido Viaro, perto do Teatro da Reitoria e do Guairinha, com o qual tem parceria. Faz parte da malha cultural da cidade – e estar bem situado responde por parte de seu êxito. É comum haver fila à porta, de quinta a domingo, com gente na disputa por um dos 60 lugares sentados oferecidos pela casa. Se não fizerem muito luxo, outras dez pessoas conseguem um lugarzinho espremido para assistir às peças de repertório, como Manaós, Nuon, Tchekov ou O malefício da mariposa – para citar alguns marcos da companhia que dá nome ao local, fundada e dirigida pela atriz e produtora Ana Rosa Tezza.

Com perdão ao uso da linguagem corporativa no sagrado território das estéticas, mas o Ave Lola é um case. Merece ser estudado – pelas parcerias com o Cirque Du Soleil, pelas expedições ao Amazonas, por ter adotado o modelo “pague quanto vale”. Sobretudo, o Ave merece ser observado, como solene banana que manda para os algozes que desdenham do teatro. Basta se plantar num cantinho do estacionamento para perceber que alguma coisa acontece naquela esquina da Marechal com a Rua General Carneiro.

Explico. O espaço de criação – como é chamado – funciona num daqueles casarões protomodernos da capital, dotado de varanda, janelões, sótão e quintal de dar inveja nos vizinhos. O fato é que o quintal deixou de fazer parte da residência – foi transformado num estacionamento particular, pago, com administração à parte, o que gera um delicioso embaraço. O terreno se tornou uma área conjugada, com dois inquilinos cujos ramos de atividade não desfrutam de nenhum parentesco. Eis a graça.

“O teatro nunca foi esnobe. Sempre fomos um bando de mortos de fome. Atores trabalham historicamente por prato de comida. Mas são convocadores – chamam à emoção”

Volta e meia os donos dos carros, na chegada ou na saída, não resistem e botam o nariz na porta do Ave Lola. Flagrados, perguntam para a trupe de 20 jovens da companhia “o que é que é isso aqui?” – praticamente um “que diabos?”. A resposta “um teatro” vem seguida de um “quer conhecer?”. Poucos aceitam – mas se vão embora encafifados com o que viram pela fresta. Sim, é um teatro. Tem palco. Mas também uma grande cozinha, com mesas e cadeiras, decks, estantes de livros, tudo tingido de um despojamento franciscano e ocupado por uma moçada feliz, que parece saída de um seriado da década de 1960. Não chegam a ser hippies, mas estão perto disso. “É quase circo, quase commedia dell’arte. A pessoa entra e vê alguém fazendo comida. Tem de ser assim – o teatro nunca foi esnobe. Sempre fomos um bando de mortos de fome. Atores trabalham historicamente por prato de comida. Mas são convocadores – chamam à emoção”, resume Ana Rosa Tezza.

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O Ave Lola intriga. Ainda mais se num dos expedientes da companhia – que não se larga – estiver sua criadora. Ela é afiada. O grupo completará dez anos em 2020 – sendo que há três opera dentro do casarão do estacionamento do Alto da XV. Já Ana Rosa soma três décadas de atividades cênicas, tempo em que fundou e se retirou de umas tantas sociedades, ganhou prêmios, aplausos e reconhecimento para muito além do sobrenome famoso: ela é sobrinha do escritor Cristóvão Tezza, a quem ainda chama de tio Tovo. Um dos muitos privilégios dos quais desfrutou foi ter o autor de O filho eterno lhe contando histórias para dormir, quando criança, no período em que ambos viviam em Rio Branco, no Acre. Na ocasião, admirava o parente por uma qualidade hoje esquecida: “Ele era um grande datilógrafo”.

Fosse dar um conselho aos inquilinos do estacionamento, diria que vencessem a malvada da timidez curitibana e aceitassem o cafezinho oferecido pelos atores supimpas que trabalham no Ave Lola. Sobretudo, sugeriria que tivessem um dedo de prosa com Ana Rosa Tezza. Ela domina o que o historiador francês Theodore Zeldin chama da arte da conversa. É uma sereia. Uma encantadora de serpentes. Uma “mãe libanesa”, como gosta de brincar, em alusão a uma de suas origens, cuja feição aquilina e a personalidade solar não deixam mentir. Parece uma das personagens magnéticas saídas da obra de Milton Hatoum. Gosta de receber – e sob sua tutela qualquer lanchinho vira a melhor tarde do resto das nossas vidas.

Não esperem dela lamúrias sobre falta de público, de verba, de apoio. Tampouco parece ter paciência para intrigas da classe ou para soltar farpas contra algum desafeto. Antes, nos brinda com a combinação explosiva de sua personalidade: é uma mulher bonita, elegante e engraçada, dada a tiradas velozes, dona de um arsenal de crônicas ligeiras que temperam a vida, não raro protagonizadas por ela mesma. “Acho a minha grama a mais bonita”, reconhece. Talvez seja parte do segredo da companhia que administra, sempre cercada de gente por todos os lados, os da linhagem direta, os agregados, os simpatizantes. Ela pede perdão ao clichê, mas desde criança andava com séquito. Na mocidade, a tendência plural se acentuou. Assim que teve suas duas filhas, uma atrás da outra, saracoteava com as gurias nos braços, embolada, pra tudo que é lado, já assumida como um indivíduo no coletivo. “Não tem jeito. É assim que eu me vejo.”

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Em 2010, quando a Ave Lola começou, Ana Rosa estava numa posição confortável. Tinha encontrado seu lugar no panteão das atrizes locais, o que não era pouco. O Paraná nunca teve tantas mulheres de teatro espetaculares de uma só vez como de meados dos anos 1990 em diante. Listá-las é um desafio – a relação passava, então, por Claudete Pereira Jorge, Nena Inoue, Rosana Stávis, Gilda Elisa, Christiane Macedo, Olga Nenevê... Àquela altura, Ana fazia os espetáculos que queria e pagava as contas como professora de artes cênicas – sua formação – na Escola Internacional. “A gente montava Shakespeare com música ao vivo”, lembra, sobre a experiência.

Foi quando começou a conspiração: uma pá de gente deu de dizer que ela devia dirigir profissionalmente, da amiga Cristine Conde à mãe, a ginecologista Marli Genari. Quando se deu conta, estava à frente de O malefício da mariposa – da obra de García Lorca –, uma encomenda de Cristine; e no comando de uma casa velha, na Rua Portugal, primeira sede do Ave Lola. O local foi alugado por Marli contra a vontade da filha, que não se via nem pintada no papel de gestora ou algo que valha. A médica morreu logo em seguida da assinatura do contrato. Seguiram-se 15 dias de luto. Ana viu nessa rasteira emocional um oráculo. Não ia ser menos atriz porque tinha de passar a mão na vassoura e limpar seu teatro, arrancar tiririca no pátio. “A casa era bem pequenina e feia. Eu olhava e enxergava o Palácio das Artes. Minha mãe tinha me arrumado aquilo. Ela sempre foi fã dessa minha carreira que é uma falência só”.

Ana Rosa Tezza domina o que o historiador francês Theodore Zeldin chama da arte da conversa. É uma sereia. Uma encantadora de serpentes

A fundação do Ave Lola é uma das histórias na qual a atriz se tornou bamba em contar. O nome nasceu de uma expressão repetida a esmo por Ana, numa referência à maneira que os imigrantes usavam para não repetir “Ave Maria” em vão. Digamos que funciona como um mix improvável de “puta merda” com “Nossa Senhora me acuda”. Faz todo sentido. Essa e outras tiradas arrancam risadas a granel. A narrativa passa pelas tantas vezes em que, ao final de cada espetáculo, agradecia aos cinco gatos pingados que estavam na plateia. Confiava que a freguesia, se satisfeita, indicaria as peças para os amigos. Passa também pelas ocasiões em que, do outro lado da rua, observava a turma que não tinha conseguido entrar no teatro vizinho, o Novelas Curitibanas. Dirigia-se a um por um dos “sem ingresso”, para convidá-los a conhecer “um espaço novo que tinha começado”. Chegou a acudir esse pessoal com 20 guarda-chuvas na mão, salvando-os da tempestade. E a lhes oferecer uma caneca de sopa em noites de frio, “feita no liquinho”.

Numa das ocasiões em que o Ave Lola era um desconhecido até mesmo da classe artística, apareceu na plateia ninguém menos do que o ex-prefeito, ex-governador e arquiteto mundialmente conhecido Jaime Lerner. Sentou-se num cantinho sem fidalguia. “Em Curitiba nunca faz muito calor, mas naquela tarde o termômetro parecia chegar a 40 graus. Pensei – ‘Deus, o Lerner tá derretendo. Vai morrer de calor. E a culpa vai ser minha...'” Ao final, cumprimentaram-se, tornaram-se amigos e ele se converteu num dos muitos entusiastas do Ave Lola. Toda sessão aparecia alguém com quem ele tinha comentado a existência do teatro. Até que há três anos o espaço teve de ser devolvido – por ironia, para se transformar num estacionamento.

Ana Rosa, as duas filhas que trabalham na companhia, Laura e Helena, e toda a trupe estavam convencidos de que tinha cegado a hora de reduzir o Ave Lola. Iriam para uma salinha num coworking – mas súbito apareceu a casa na qual estão agora. A transferência foi mediada pelo iluminador Beto Bruel junto a um dos decanos da cultura no Paraná, o advogado Constantino Viaro, dono da atual sede e do estacionamento ao lado. Viaro se soma à lista dos apoiadores do Ave Lola e é o responsável indireto pela combinação divertida de filas de carros e fila de gente para a próxima sessão de teatro. Arte, cultura e gente tem dessas coisas. Melhor não duvidar, Ave Lola.

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