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Foto: Leticia Akemi/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
Foto: Leticia Akemi/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima| Foto:

As contas podem não ser um primor de exatidão, mas o arqueólogo paranaense Igor Chmyz, 80 anos, passou mais de 21 mil dias de serviços prestados dentro do Edifício D. Pedro I, da Universidade Federal do Paraná. Uma eternidade. Mas nenhum dia foi como 5 de setembro último – uma familiar quarta-feira gelada e azul na estranha CWB. Nesta data, o pesquisador se despediu da instituição à qual se dedicou por 58 anos.

Não houve alarde, sirenes ou um minuto de trégua no ogrobol, esporte popular na redondeza. Pela manhã-manhã-mesmo, bem ao gosto beneditino do pesquisador, uma Kombi estacionou na Rua General Carneiro para carregar uma centena de caixas com livros, fichários e cadernos de anotações colecionados em quase seis décadas de atividades, a maior parte em trabalhos de campo nos rincões do Paraná. O acervo pessoal deixa o inquilinato do 12.º andar, a cobiçada cobertura da UFPR, e ganha novo endereço – o porão da velha casa de madeira dos Chmyz, no bairro Tarumã, perto da caixa d’água. É dali que o nosso Indiana Jones passa a despachar a partir da próxima semana.

“Estou bem. Fiz o meu luto”, assegura o veterano de rosto anguloso, olhos fundos, peso pena e um inseparável cachimbo abastecido com fumo Escorial. Os mais próximos sabem a lenha que foi para Igor tomar a decisão de deixar a universidade – da qual era parte do mobiliário, como brincam alguns, mas sobretudo uma peça de resistência.

Chegou ali em 1960 – como um daqueles estudantes que não passam despercebidos. O médico antropólogo português Loureiro Fernandes – o primeiro a botar a vista nele – o colocou nos trilhos da magna ciência. Foi um “problema”. Pouco dado a preguicites, Igor chegava a passar 100 dias por ano em campo, seja na beira do Rio Ivaí, do Paranapanema, ou na barrancas do Iguaçu. A cada retorno de viagem, a reserva técnica do Centro de Pesquisas Arqueológicas, o Cepa, inflacionava, exigindo puxadinhos no último piso do D. Pedro I, consagrando aquelas alturas, por ironia, como sede das sobras garimpadas nos subterrâneos. Os sacos e sacos de algodão apinhados de material arqueológico são uma das mais belas imagens que uma universidade pode oferecer.

Meses preferidos por Igor de expedição? Os das férias de janeiro, fevereiro e julho, com pequenas empreitadas em dias santos e cívicos. “Eis o único cara que fica feliz com greves, pois pode esticar as viagens de pesquisa”, declarou certa feita, em público, o historiador Ruy Wachowicz. Por certo houve quem se indispusesse com o gênio indomável de Chmyz, conhecido por ser tão bom de rinha quanto de lida. Raro, porém, quem não reconheça suas virtudes. Uma delas: driblar a tirania do tempo. Tem um relógio próprio, o que explica as travessuras que faz com os ponteiros.

Em 2007, ao receber a compulsória que o intimava a se aposentar, tomou-a como um palavrão à santa mãezinha ucraniana. “Mas já?” Bateu o pé, pois tinha sítios a descrever, projetos a cumprir, artigos para redigir, alunos a orientar… Que não lhe torrassem o saco. Ficou mais 11 anos no posto, rodeado de mestrandos, estudiosos de outros estados e países, somando pontos à imagem da UFPR. Nos calcanhares, repórteres em busca de uma boa história. Não decepcionou a ninguém. A quem interessasse uma prosa, por exemplo, sobre Reduções Jesuíticas, uma de suas especialidades, bastava cruzar os mais de 600 metros quadrados do Centro de Pesquisas Arqueológicas para encontrá-lo. Era seu Forte Apache. Ocupava – concentrado, pernas cruzadas – um canto da grande mesa de madeira, rodeado de cerâmicas, ossos e das indefectíveis fichas anotadas à mão. Ao lado, cadeiras dos móveis Cimo. A borracha verde, os lápis dignos de mercado de pulgas e as sobras de papel para anotações davam em qualquer um vontade de se tornar seu voluntário. Houve quem o fizesse.

A decisão de encerrar o expediente na universidade veio há poucos meses, assim que foi selada a negociação interna que transfere o Cepa – uma espécie de sucursal do finado Museu Nacional – para um câmpus do Juvevê. O novo espaço, entende o pesquisador, não o contempla. Mudar-se para lá seria como se acotovelar numa quitinete, como colocar o elefante num Fusca. No mais, vinha somando sinais de que, afetos científicos à parte, sua ampulheta interna deixava cair o último grão de areia.

Não faz muito, viu-se homenageado como pioneiro por um órgão de classe, ao lado do arqueólogo Oldemar Blasi e do geólogo João José Bigarella, dois de seus contemporâneos mais afamados. Ambos logo se foram para lá de Marrakesh. Fez as contas sem dó. “Logo serei eu.” Dia desses, chamaram-no para um evento no qual devia comentar 2001: Uma odisseia no espaço, o clássico de Stanley Kubrick que completa 50 anos em 2018. Sabia ser uma deferência, mas não é esse o papel que deseja para si. Avisa que a idade não lhe pesa – espalhem por aí que continua na ativa. Sua vida pós-UFPR inclui uma expedição agendada na região de Foz do Iguaçu – cidade que lhe deve um “I love you” escrito nas nuvens pela Esquadrilha da Fumaça – e no interior de Santa Catarina. No mais, há pilhas de anotações à sua espera; “Tenho mais o que fazer”, resume a ópera, com a franqueza lendária que já tirou muita gente do sério.

***

Como prova da máxima de que “o ouro é provado no fogo”, a semana mais difícil da vida do cientista ganhou um anexo – o incêndio que fez poeira do Museu Nacional, domingo passado, incinerando algo próximo de 20 milhões de peças e documentos. Nem uma guerra faria pior. Ouviu a notícia boquiaberto. “Se acontecesse algo semelhante com as peças do Centro de Pesquisas Arqueológicas, eu morreria”, admite. Não esconde a indignação cívica a respeito do acontecido – impostando a voz alguns decibéis acima do normal. “Era uma tragédia anunciada”, avalia, ao tratar da penúria da instituição, sua conhecida de outras primaveras.

Visitou-a pela primeira vez em 1962, com laço firmado de uma vez por todas. Gente do Museu Nacional passou a estagiar no Cepa e no Museu Paranaense, um parentesco de primeiro grau. A conversa sobre o ocorrido na Quinta da Boa Vista é pontuada de silêncios. Bem que tento extrair de Igor um significado para o festim diabólico que assaltou o seu setembro de 2018. Faz pausas. Prefere falar das flores.

Sem melindres, tira das caixas fechadas para a mudança um dos arquivos com fichas dos mais de 1,5 mil sítios arqueológicos que mapeou. São feitas de próprio punho porque preenchidas em campo. Depois ganham os computadores. Confidencia que, a cada vez que mexe num desses registros, um cinema assalta sua cabeça. “Quando eu pego a ficha, visualizo o sítio. Independentemente da época. É como imprimir uma fotografia”. Se a pessoa é para o que nasce, Igor Chmyz veio ao mundo para calçar botas que o levam léguas e léguas adiante. E para peitar tratores. Sabe o professor de Matemática que enfrentou o tanque de guerra na China nos idos de 1989, na Praça da Paz Celestial? Pois é amador perto do arqueólogo.

Crônica publicada na Gazeta do Povo em junho do ano passado registra algumas das aventuras protagonizadas por Igor. São à la Coronel Fawcett. Vão de naufrágios à perseguição de arapongas do regime militar. A pergunta que lhe fazem é sempre a mesma – quando diabos vai fazer um livro sobre os bastidores de suas expedições. Pois o escreveu – e avisou à mulher, a historiadora e colaboradora incansável Roseli Ceccon, que só deve ser publicado após a morte dele. “Conto tudo. Quem quiser me processar, que o faça na mesa branca”, diverte-se aquele que foi para muitos políticos e empresários o “inimigo público número um”.

Para fazer valer o mapeamento arqueológico, teve de falar alto e grosso umas tantas vezes. Perseguiram-no como cães atrás de um carro. Aborrecia-se a cada sombra do poder que se projetava contra a cultura. Não podia deixar essas memórias de fora de seu legado. São história – e a história lhe diz respeito.

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