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Foto: Arquivo Euclides Coelho de Souza.
Arte: Felipe Lima.
Foto: Arquivo Euclides Coelho de Souza. Arte: Felipe Lima.| Foto:

“Tenho 84 anos e sete meses”, informa o bonequeiro Euclides Coelho de Souza a uma jovem que lhe pergunta a idade. A guria responde à queima-roupa: “Que é isso, senhor. Não é preciso somar os sete meses”. Pois era a deixa que lhe faltava. O ator fala mais alto, “84 anos e…”, no uso de todas as ênfases aprendidas nas ribaltas: “Como não?” Diz-se um homem que tem pressa. Sete meses fazem muita diferença para quem está cansado de esperar.

Aos fatos. Euclides soma mais de 50 anos de vida artística. A maior parte desse tempo passou à frente do Teatro de Bonecos Dadá – companhia que construiu ao lado da mulher, a paranaense de Rio Branco do Sul Adair Chevonika, morta em 2013. Só os deuses sabem a quantidade de apresentações, festivais, público e viagens que fizeram – da antiga União Soviética, passando pela França e países da América Latina. Escreveram um currículo dos deuses, acompanhado de uma quantidade tamanha de resenhas em jornal que, sozinhas, dariam uma enciclopédia. Os dois causaram.

Mas que nada – tudo o que Euclides & Dadá queriam era um espaço cênico para chamar de seu. É assim que acontece em outras fronteiras. “As pessoas querem ver uma peça com teatro de bonecos e saber onde encontrar. E num lugar fixo é possível formar novos manipuladores de títeres. É uma condição para que essa arte não morra”, explica o veterano. O casal esteve perto de conseguir um endereço. Bateu ponto no Centro de Criatividade do Parque São Lourenço, na década de 1970; e no Bosque Gutiérrez, em meados dos anos 1990. No Teatro do Piá. Mas a cada troca de faixas nos governos e prefeituras, viam-se desalojados, à revelia do reconhecimento a eles dedicado pela comunidade bonequeira do planeta. “As pessoas não entendem pi-no-co-li-na da gente”, encena Euclides, em sua própria língua.

Os bonecos – centenas deles, confeccionados por Adair – foram se acostumando à escuridão dos baús, espalhados aqui e ali, na casa dos filhos. A biblioteca especializada em marionetes e afins teve destino semelhante – as caixas com obras em tudo que é língua aguardam o dia em que pontificarão um instituto, à disposição do público. Não aconteceu. Por isso Euclides insiste: “84 anos e sete meses”.

Não faz muito – quando ainda estava devassado pela morte da “camarada Adair”, como gosta de dizer –, Euclides entendeu que um livro faria as vezes do museu que a companhia de Teatro de Bonecos Dadá merece. Um livro bonito, capa dura, colorido, com informações o bastante para sinalizar às novas gerações que um dia houve um homem e uma mulher doidinhos para usar da arte e do humor para interferir no cotidiano e na história Um “livro-museu”, escrito por uma amiga, que tinha de ser a jornalista Dinah Ribas Pinheiro.

O desejo de “Euclides Dadá se realizou. Há menos de um mês está no mercado Teatro de Bonecos Dadá – memória e resistência, fruto de quatro anos de pesquisa de Dinah. Na verdade, bem mais do que isso. O primeiro encontro da jornalista com a trupe data de 1974. Ela descreve o momento com minúcias. Euclides e Adair tinham acabado de voltar do exílio no Peru – onde viveram quatro anos, depois de amargar sucessivas prisões, acusados de subversão pelo regime militar. Pois é – os títeres do Dadá ameaçaram a ditadura. O retorno à cidade onde ambos consolidaram a carreira se deu aos poucos – e aquela era a primeira apresentação no Centro de Criatividade, benesse concedida pela então gestora pública Maria Elisa Paciornick.

Dinah estava lá. “Quando cheguei, o espetáculo tinha começado. Era um pout-pourri. No escurinho, vi a criançada atenta. Fui tocada. Tivemos empatia de cara. Sou do interior. Nunca tinha presenciado nada igual”.

Nos quase 40 anos que se seguiram, Dinah não perdeu uma estreia do Teatro de Bonecos Dadá. Engrossou a confraria informal de fãs-colaboradores-benfeitores que se viraram do avesso para a companhia não morrer. A lista é longa. Mas é improvável que muitos possam falar do grupo com tanta propriedade quanto Dinah. Só perde para Euclides, cuja memória faz qualquer um se sentir um cabeça de vento. Faz 1001 sinapses por minuto e, sem vírgula nem ponto, nos leva de Moscou a Lima, com escalas em Paris.

É comovente vê-lo dizer trechos inteiros de espetáculos escritos por bambas como José Maria Arguedas, Nazin Hikmet, Jean-Loup Temporal e Germán List Arzubid…. E lamentar a vida sem Adair. “Ela fumava demais”, vaticina, antes do cair do pano. Suas pausas são tão espetaculares quanto sua dicção. Sem Adair, o show não pôde continuar.

Quanto aos sonhos, não foram engavetados. Depois do livro-museu, quem sabe não vem o convite para dirigir uma peça de teatro. E disposição para colocar no papel dicas para professores e atores interessados em trabalhar com teatro de bonecos. Quem sabe alguma empresa ou universidade decide adotar o acervo com as peças confeccionadas por Adair, os livros e as revistas colecionados pelo casal. “Temos inimigos: os fungos, as pulgas”, declama, com gestos largos.

O Dadá não diz, mas bem que um roteirista e um diretor poderiam levar para as telas a incrível história da trupe. Não lhe faltam ingredientes: romance, aventura e resistência política por meio da arte. À sinopse.

No final dos anos 1950, Euclides – um jovem criado em Roraima – migra para o Sudeste e se engaja no Centro Popular de Cultura, o CPC. Experimenta todas as paixões estéticas que despertaram a libido de sua geração. Foi em meio a essa roda-viva que veio parar em Curitiba, em 1961, para um curso de teatro com Gianni Ratto, Joel Barcelos e Helena Sanches. Na ocasião, conheceu uma professora entediada do Colégio Estadual Júlia Wanderley – Adair Chevonika – e sua vizinha na Praça Espanha, Mirian Galarda. Ficaram amigos, no melhor do estilo “encontrei a minha turma”. Saíram das oficinas dispostos a fazer teatro de bonecos – para eles, melhor arma para a revolução.

Euclides não se furta de interpretar o som e a fúria que moviam Adair. “Ela tinha motivos”. Quem a vê, loura e esguia, em 1963, numa foto ao lado da poeta Helena Kolody – das mãos de quem recebeu seu diploma no Instituto de Educação do Paraná –, não imagina o duro que deu. Sua mãe era “empregada de gente rica”, como se dizia. O pai não assumiu a paternidade – o que deve ter rendido assunto em Tranqueira, um recanto esquecido da Região Metropolitana de Curitiba, onde tudo se deu. Pois a menina vingou. “Ela jurava ter dado aulas até para o Roberto Requião”, diverte-se Euclides. “Tinha necessidade de política. Foi atrás”, resume.

Depois do curso, Adair e Mirian não ficaram de papo pro ar. A garagem da família Galarda virou um palco improvisado para domingueiras de teatro de bonecos. Era 1964. Casais compareciam com a petizada. O local ganhou o nome de Dadá, em homenagem carinhosa a Adair. E “rolou” uma pressão para que a experiência do palco se convertesse numa instituição de ensino para crianças. Surgem parceiros. E nasce a Escola Pequeno Príncipe, que morre um ano e meio depois, em 1966, acusada de ser um centro de ensino de marxismo para meninos e meninas que ainda molhavam o chão da sala de aula. Média de idade: 5 anos. “Foi uma rebordosa muito grande”, lembra Euclides.

A perseguição – prova de que a bobajada da Escola sem Partido não é tão original assim – virou motivo de chacota nacional, na pena inclemente do cronista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. A perseguição ao colégio “Pequeno Lênin”, como brincou ele, foi parar nas páginas do jornal Última Hora e integrou a lista do que Stanislaw chamava de “Febeapá” (Festival de Besteiras que Assola o País). Não impediu o fechamento da escola. No final dos anos 1970, pataquada semelhante se repetiu em outras duas instituições alternativas de Curitiba, a Oca e a Oficina.

Na ocasião da repressão ao teatro que virou escola, Adair fazia oficinas cênicas em Moscou. Foi aconselhada a ficar na URSS. Se voltasse, seria presa no aeroporto. Depois zanzou pela Europa – sempre fazendo o que mais gostava: teatro de bonecos. “Tivemos o noivado mais estranho do mundo – três anos sem nos vermos”, brinca Euclides. Na volta rolou casamento, o nascimento do filho André e o exílio. São memórias de chumbo. O menino ficou com a avó. Em cada dia longe do Brasil, a dupla juntava tostões para voltar. E se viu retornando aos poucos, um pezinho aqui outro ali, até se instalarem no bairro São Braz e ganharem um palco no Centro de Criatividade, onde Dinah os conheceu.

“Esses bonecos foram confeccionados nos Estados Unidos?”, perguntou uma provável investidora aos recém-chegados. “Não, a gente faz na cozinha lá de casa”, respondeu Euclides. Todo mundo achou graça. Uma bendita gargalhada. O grupo ganhou o patrocínio do “banco da nossa terra”, o Bamerindus, que deu à companhia seus poucos anos de bonança financeira. Comunismo e capitalismo na ribalta, vejam só. O patrocínio um dia minguou, mas não a glória. A dupla não conheceu plateia vazia nem criança descontente. “O humor é maior que a bala”, avisa o artista, como um grito parado no ar. Eis o Dadá.

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