Redação

E aí, qual é o teu Bacurau?

Redação
08/09/2019 18:00
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Fiquei plugado em dois
fatos culturais das últimas semanas. O primeiro foi assistir a uma pré-estreia
do filme Bacurau, de Kleber Mendonça
Filho e Juliano Dornelles. Recomendo. Ainda estou digerindo as cenas
lisérgicas, o toque de western
caboclo com pitadas de trash, as
pistas que os diretores deixaram aqui e ali, feito as migalhas de pão da fábula
de João e Maria. É de segui-las. O segundo fato – em escala de importância algo
menor – foi a leitura da crônica “Único jeito de não ficar triste é ficar puto”,
de Gregório Duvivier, publicada no jornal Folha
de S. Paulo
.
Em miúdos, o sátiro, pimpão e iconoclasta Duvivier pergunta se a gente está transformando a indignação em ação. O estar puto em estar a postos. Se botamos a melancolia em banho-maria ou pra ferver. Questão elementar, meu caro Watson. A indagação impressa no texto é uma fórmula surrada, vamos combinar. Remete aos manuais de piedade inacianos, típicos da espiritualidade da Contra-Reforma. Funciona como uma espécie de um pega-pra-capar, um pôr-na-parede, espremendo para que o penitente saia do chororô, da desculpa esfarrapada, se vista de virtude e vá para a realidade, fazer a parte que lhe cabe.
Como a proximidade poética
entre cristianismo e o marxismo às vezes assusta, tão flagrante é, o exame de
consciência proposto pelo cronista faz lembrar de Engels, para quem não basta
entender o mundo, sendo preciso transformá-lo. Por esses e outros rodopios
mentais, a ideia veiculada na crônica também invoca – e não me xinguem –
Ernesto Guevara (1928-1967), o Che. Explico. Independentemente de crenças
ideológicas e o escambau, o enigma Che Guevara permanece uma brasa acesa. Se
pensamos em alguém que virou a mesa, lembramos dele.
"Bacurau" é um manifesto antropofágico, um elogio à reação, um receituário sobre como transformar ódio em atitude
Recordo de, há mais de uma década, ouvir seu biógrafo – o norte-americano John Lee Anderson – dizer em entrevista que encontrou garotos com a camiseta, estampando o rosto do líder argentino, em lugares como a Indonésia e a África Central. As imagens serigrafadas partiam quase sempre da célebre foto de Alberto Korda, o homem certo na hora certa: o Che que retratou, com os olhos fitos no horizonte, lembra um Sudário. Explica o rebuliço que causou, causa e assim por diante, por um tempo infinito.
Para encurtar a prosa – Bacurau é um manifesto antropofágico, um elogio à reação, um receituário sobre como transformar ódio em atitude. A crônica de Duvivier segue a banda. E Che, que não foi citado por nenhum deles, é, penso, a síntese do que querem dizer. Deixo aqui minha defesa dessa tese. Faz pouco, reli fragmentos de um livro com o qual quero ser sepultado – O último leitor, do argentino Ricardo Piglia. O intelectual trata do lado B, o mais chulé, de autores como Kafka e Flaubert. À primeira vista, a obra é para iniciados em literatura. Mas Piglia – morto em 2017 – tira seu escrito do cercadinho e o oferece a quem interessar possa. E o faz lançando mão do mais popular dos mitos do Panteão moderno. Na capa, estampa uma foto sofrível de Che Guevara, na guerrilha boliviana, lendo, em cima de uma árvore. De quebra, dedica um capítulo inteiro ao conterrâneo. Não o faz para elogiar ou criticar escolhas políticas. Não o chama de herói ou de sanguinário. Classifica-o, em obediência ao título do livro, de “o último leitor”. O que quer dizer com essa expressão mata a charada.
À revelia da loucura de cada um, difícil não se manter atento e forte à figura do Che. Basta recuperar a cena da filmagem de Diários de motocicleta, do brasileiro Walter Salles Júnior, em que Gael García Bernal, na pele do guerrilheiro quando jovem, cruza um rio, enfrenta uma asma matadora e faz ali seu rito de passagem. Tudo ao som de Al otro lado del río, do inigualável Jorge Drexler. Guevara segue em idílio, braçada após braçada, o ar a lhe faltar dos pulmões. A sequência faz a gente se sentir o piá rico da parábola bíblica. Só na observação, paralisado como uma varejeira. Um sujeito cheio de boas intenções, mas sem um pingo de coragem. É como se naquele instante o Che encarnasse o papel dos santos, dos benfeitores, dos altruístas e ele mesmo nos fizesse a pergunta de Duvivier – “e você, o que vai fazer?”
Ricardo Piglia está ocupado em decifrar o que se passava na cabeça daquele sujeito que, em guerrilha – provavelmente faminto e com os pés cheios de bolhas assassinas –, sobe numa árvore para ler. Mais: quer saber o que o move, depois da morte quase consumada, a se arrastar até uma escola de aldeia e escrever no quadro negro: “Eu sei ler”. É provável que a leitura tenha sido sua maior paixão. Arrumou tempo para praticá-la mesmo quando tudo em volta virou pó. O livro era um desejo ao qual tinha intenção de se dedicar, mas não podia ceder, pois precisava se entregar à realidade, de modo a transformá-la.
Crer em sujeitos que abandonam livros, artes e as rotinas de uma aldeia para reagir equivale a uma utopia
Não foi o único a viver esse dilema. A atriz italiana Tina Modotti, oriunda do cinema mudo, largou tudo ao encontrar uma causa para chamar de sua, nas primeiras décadas do século 20. Tornou-se fotógrafa, de grande talento, conterrânea da fina flor da arte muralista mexicana, com a qual se engajou. Mas não se furtou de atirar sua máquina num rio, crente de que ao dedicar tanto tempo à arte, faltavam-lhe horas para se dedicar à “luta revolucionária”, uma expressão de seu linguajar. Qual o Che, tempos depois, morreu tristemente, em nome de suas crenças – o que não acontece mais, nem que a vaca tussa.
Podemos não segui-los na radicalidade – tão ocupados estamos com poltronas confortáveis –, mas permanecemos meio encabulados ao recordar que Ches e Tinas saíram do cercadinho burguês e intelectual e, com perdão ao clichê, foram à luta. Por quê? Por fé. Em Bacurau, o filme, uma comunidade sertaneja “fora do mapa”, desconectada e cujo museu os míseros visitantes que por ali passam se recusam a entrar – para azar deles mesmos –, emerge da fatalidade; e faz tudo diferente do que imaginamos. Em sentido metafórico, os moradores jogam a máquina de fotografar fora, qual Tina. Atravessam o rio, qual Che. Abrem mão da “vida besta”, aquela do poema do Drummond, na qual os dias passam pela janela.
Bonito. Mas para uma pá de gente, não haverá mais ação. Isso é bobagem do cine e da canção. Crer em sujeitos que abandonam livros, artes e as rotinas de uma aldeia para reagir equivale a uma utopia. O teatrinho acabaria por aí. Mas alto lá. Talvez seja saudável beber algumas doses de autoengano e discordar – para bem da saúde mental. Em algum lugar, sempre tem quem cruze para a outra margem do rio. Nem que seja pela imaginação, o que é meio caminho andado.
Como o assunto
enveredou para o Che, lembro do antropólogo Oldemar Blasi – que colecionava
livros sobre o guerrilheiro, projetando no personagem a biografia que, suponho,
gostaria de ter. Também merece menção o cineasta Valêncio Xavier, que resistiu à
desmemória do Alzheimer ao planejar fazer um último filme. O desejo de filmar o
mantinha excitado e pensante. Seria sua obra-prima: a suposta passagem de Che
Guevara, disfarçado, por Curitiba, em meados da década de 1960. A vontade louca
de andar uns passos ao lado de Guevara deu uns anos e meses a mais de lucidez a
Blasi e Xavier, ambos partidos. Não acreditariam se lhe dissessem ter sido Che “o
último leitor”, o idealista derradeiro. Outros sairão das letras para as ruas, diriam,
pelo simples motivo de que assim tem sido. A pergunta de Duvivier faz sentido. Bem
podia a partir de agora ser: “E aí, qual é o teu Bacurau?”