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Eis a crônica
| Foto: magem: Daniel Nardes/ Gazeta do Povo

Suspeito que todos os cronistas do país – dos que ocupam a ponta da escala criativa, como Antônio Prata, aos que são conhecidos no limite da paróquia – já escreveram sobre o sequestro da crônica, nesses tempos sombrios. Eu mesmo, a pedido do jornal Cândido, tive a oportunidade de responder por que diabos passaram a mão na bunda dos cronistas, deixando a gente sem jeito e sem graça. Não há moralidade que resista falar do amor, do sorriso e da flor quando se ultrapassa a marca das 500 mil mortes.

Resta-nos colecionar temas – planos para um dia quem sabe, se os deuses permitirem. Cheguei a pensar em reeditar o que pode ter sido minha estreia no gênero – uma narrativa assanhada sobre a morte da minha bisavó, publicada na extinta coluna “Peteca”, do caderno Viver Bem. Na época, bem lembro, eu me senti um parente distante do Rubem Braga. Em geral, assuntos que foram repetidos infinitas vezes, testam a plateia. A gente sabe se vai agradar ou não. Foi o caso. Minha bisa Matilde morreu em 1974 e eu, então, passei anos a bordo daquele episódio em que drama e comédia saíram pra dançar, bem a gosto da falecida.

Desisti da ideia faz uns quatro meses, depois do enterro de um tio, morto por Covid. Fazia frio, a chuva era fina. Não houve sopa, nem tempo para histórias. Os choros, convulsivos, impediram qualquer palavra. Se alguém me perguntar qual foi o dia mais triste da minha vida, não hesitarei em contar sobre a morte do Juvenal – um homem bom que, na função de gráfico, imprimiu a Gazetona por 37 anos. Tinha uma risada gostosa, queria tanto ouvi-la.

Plano desfeito, armo outra estratégia. Será sobre o Carlão pipoqueiro – um negro alto, esguio, que trabalha perto de um cursinho da Sete. Ah, ele já respondeu ao flerte que antecede à crônica. Vai dar crush. Com seu carrinho vermelho-Corcel GT, parece saído de um filme americano. Como eu, a freguesia toda deve se morder de curiosidade em saber algo mais. Meu trabalho é esse – xeretar até sujar o nariz de terra. Como não o vejo faz tempo, desconfio que seja uma projeção da minha mente confusa, personagem de um mundo prestes a acabar. Mais uma vez, quero estar errado. Tomara.

Não sendo o Carlão das pipocas, tenho como alternativa o guardador da minha rua. Ele carrega todos os problemas do mundo – acredito, inclusive, que foi expulso do pensionato aqui de frente de casa. É raro vê-lo sóbrio – e quando isso acontece, sua voz é grave e elegante, como se fosse um dos possessos do Stephen King. Tomado pelo álcool, saracoteia no sinaleiro, enche o nosso saco e pergunta pro pessoal que saiu de um encontro gospel, no Athlético, quanto deu o jogo. Divertido. Como sumiu por uns meses, achei que tinha morrido, por esse ou por aquele motivo. Até que o vi, como que por encanto, ajudando os motoristas a estacionar na Avenida Água Verde. Vestia um colete amarelo no qual está escrito nas costas – “logística”. Foi o momento mais poético de toda a pandemia.

Bem que tentei outros. De tanto ficar em casa, imagino por onde andam os vizinhos que tinha na infância. Num desses devaneios, me dei conta de naquele tempo, aqui perto, havia a maior concentração de moças bonitas da cidade. Ana Lúcia, Marilena, Celinha, Beatriz, Rita, Áurea, Mariângela e Rosângela, Regina e Regiane, Vilma, Eliane, Margarete... Lembro de todas, na Brasílio com a Ângelo, fazendo compras na banquinha do meu pai.

Mas ficou meio “século passado” destacar a beleza das mulheres, né. Temo ser cancelado. Sou fracote, vou chorar. Devo escrever mesmo é sobre um voluntariado que faço, dando aulas para duas jovens protestantes. Dia desses saímos do roteiro e falamos sobre a vida dos santos. Virou sessão de hagiografia para as discípulas de Lutero. Foi lisérgico. Eis a crônica.

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