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Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

Há um texto que amo – “Reflexões sobre uma autobiografia abandonada” –, publicado no Brasil em 2016, pela revista Piauí. É da tcheco-americana Janet Malcolm, decana do jornalismo mundial, posto informal que ocupa ao lado de outra norte-americana, Joan Didion. Ambas passaram dos 80 anos. Lamento que Janet & Joan sejam nomes conhecidos apenas nas casernas da imprensa, e por alguns homens e mulheres dados a ultrapassar as fronteiras do próprio umbigo. Num mundo perfeito, o que elas escrevem seria lido em praça pública.

É de Joan Didion, por exemplo, o inclassificável O ano do pensamento mágico, reportagem de cunho autobiográfico sobre perdas familiares. Ela transforma a própria dor em informação. Penso não ser difícil formar uma confraria dos que se renderam a essa obra, tantos testemunhos ouvi. Para muitos, tudo se divide entre antes e depois de ler Didion. De Malcolm, destaque-se o desconcertante O jornalista e o assassino, livro que analisa um crime hediondo ocorrido nos EUA na década de 1970, mas que nos engana: ao falar da ação da imprensa no caso, Janet age como uma atiradora de facas. Ela é cruel ao dissecar as relações entre jornalistas e suas fontes. Também de Malcolm – para os incautos, uma esnobe da imprensa nova-iorquina – merece nota Duas vidas, uma biografia sem incensos da escritora Gertrude Stein e de sua companheira, Alice Toklas, personagens dos loucos anos 1920.

Citar Janet é tarefa inglória, pois sempre falta um pedaço. Mas, de tudo que assina, permitam, não pode faltar o minúsculo texto-desabafo “Reflexões sobre uma autobiografia abandonada”. Por um motivo simples: altiva e distante, nesse trabalho curto e grosso a poderosa Malcolm expõe suas fraquezas, como se fosse um de nós em dias de pular da ponte. Surge na narrativa como se fosse um cachorro que apanhou chuva. Conta que o exercício diuturno de contar a história dos outros tolheu sua capacidade inventiva. É como se tivesse ficado viciada na realidade, vendo a mais poderosa das armas, a imaginação, atrofiar e morrer à míngua. E, sendo uma mulher velha, lamenta ser “muito tarde para mudar de pele”. O jornalismo matou a escritora. Eis a lápide.

Destaco: “Não consigo escrever sobre mim mesma como escrevo a respeito das pessoas sobre as quais escrevi enquanto jornalista. Para essas pessoas, fui uma espécie de amanuense [copista]: eles me ditaram suas histórias e eu as recontei. Eles posaram para mim e eu desenhei seus retratos. Ninguém está ditando ou posando para mim agora. […] É particularmente difícil para alguém que, com muita probabilidade, se tornou jornalista porque não queria se ver sozinha na sala.”

O dilema de Janet, que também parece ser o de Jane, é uma constante na trajetória de uma pá de jornalistas. De tanto lidar com o real, tornam-se inadimplentes para a ficção, esse objeto de desejo. Quem não gostaria de escrever como Hemingway, afinal. Alguns repórteres insistem em se tornar escritores, mas raros fazem um bom negócio com a troca. São muitos os casos de excelentes cumpridores de pautas que se tornaram prosadores paroquianos, dados a descrições enfadonhas, que nada mais fazem senão denunciar que aquele narrador está fora de lugar. Seu endereço é o olho da rua. Gostam da literatura, mas a literatura não gosta deles.

É difícil ignorar o poder que os fatos têm por sobre o intelecto, pois é como se o jornalista encontrasse um épico pronto, na voz de um entrevistado, nas peias de uma investigação. Sente-se um descobridor. Fácil entender por que tantos não conseguem se desvencilhar dessa experiência. Existem para colocar o cérebro e os nervos a serviço de encontrar uma boa história – e fim de papo. Produzir uma grande reportagem se sobrepõe à vaga possibilidade de conseguir escrever um romance, que nunca chegará aos pés, sei lá, do último título do Gonçalo Tavares. A reportagem não é a grande arte. É uma festa pagã – nos dá a eternidade de um dia. Eis o tema.

No clássico A era dos extremos – o breve século XX 1914-1991, o historiador Eric Hobsbawm afirma que o termo “reportagem” apareceu num dicionário, pela primeira vez, em 1929, depois da Primeira Grande Guerra. Sua prática era um pouco anterior, do momento em que as cidades floresciam com a Belle Époque, encontrando versões – todas solares – em vários pontos do globo. Paris, Barcelona, Rio de Janeiro, Nova York, Buenos Aires. Que seria desses lugares sem um jornal. Os cafés, as magazines, os bulevares, as óperas, os jardins, tudo apontava para um novo modo de convivência. A etiqueta à mesa, na conversa, nas relações mínimas, botavam para girar o processo civilizador. Cinematógrafos, buzinas de automóveis, gramofones, o jazz e tudo o que veio depois dos daguerreótipos traziam no colo a era da visão, do som e da fúria, como tempos depois gritaria o subestimado Marshall McLuhan.

Nenhuma linguagem traduzia melhor essa revolução do que uma matéria de jornal ou de revista, com várias fontes, fotos exclusivas, título bem sacado e texto claro e sedutor assinado por um boêmio, dado à curiosidade e sem hora de ir para a cama. A reportagem não substituía o conto, o romance, a poesia ou o cancioneiro popular, mas se juntava a eles como tradutora do espírito do tempo. É uma linguagem da modernidade por excelência. Dá vontade de chorar ao perceber que tantos – inclusive nos meios acadêmicos – negam sua validade. Pior – há quem deseje uma sociedade sem reportagem. Um desafio: anote, caro leitor, quantas matérias mexeram com sua maneira de ser e de estar. Justiça seja feita. Somos moldados pelos livros que lemos, pelas poesias que nos tocaram, mas, da mesma forma, por aquilo que os jornais nos informaram.

Ainda que haja poucos autores que azeitem essa versão, a reportagem é parente próxima das colagens dadaístas. É irônico, mas uma estética que elogiava a irracionalidade ajudou a criar uma ética da clareza e da democracia do conhecimento. Os dadás, como é sabido, promoviam uma ruptura radical com as hierarquias renascentistas, expressas na perspectiva, essa fina arte de dizer o que está à frente e o que está atrás, o primeiro e o segundo plano. Perfeita e incontestável, a perspectiva, essa tirana, dava a entender que o mundo devia funcionar como uma regra de composição para o desenho ou a pintura. Para quebrar essa tradição – usada de desculpa para legitimar toda sorte de injustiças –, o dadaísmo decidiu brincar, como o nome “dadá” sugere, e colar imagens desproporcionais, dando ao leitor o poder espetacular de interpretar uma obra de arte. Além de olhar, falar. Em vez de ficar embasbacado ante a técnica de um gênio, era convidado a ler o que significavam aquelas imagens desconexas, formando juntas uma frase visual. Muita gente saiu da casinha depois do dadaísmo.

Pois a reportagem é uma colagem dadaísta. Repare. Posso criar conexões, numa página, entre o ex-presidente Obama e o líder comunitário negro do Tatuquara, ainda que haja um abismo intelectual, social e geográfico entre esses dois homens de cor. O jornal diminui distâncias, permite discursos, bagunça as perspectivas. Que bom. Coloca numa mesma página, sei lá, um especialista que mora em São Paulo, um personagem que trabalha na Argentina, um burocrata europeu. Não há quilometragens inalcançáveis, qual uma novela da Glória Perez. Onde estiverem as vozes necessárias para contar uma história, elas serão chamadas a se pronunciar, pouco importa a língua que falem. Qual uma criança munida de goma arábica, recortes de revista e um pincel, o jornalista rompe com as perspectivas comuns e propõe um ponto de vista sobre os fatos. Verdade? Melhor dizer validade. Explica o dia, de forma manca, defeituosa, mas sem esse mecanismo falho nos vemos sós. Os fatos contados nos colocam perto de alguém e de algo. É fascinante para quem lê, alquimia para quem escreve.

Este texto é um parabéns antecipado à Gazeta do Povo, que em 3 de fevereiro comemora 100 anos. Foram muitas as laudas de louca e viciante realidade.

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