• Carregando...
Foto: Felipe Rosa/Arquivo Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
Foto: Felipe Rosa/Arquivo Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima| Foto:

Prezado leitor, a coluna de hoje se destina ao dentista curitibano Harry Orloff Luhm, morto dia 20 de janeiro, aos 89 anos. Bem poderia estar na página de obituários. Mas um fato curioso a atrai até aqui. Há um Harry inédito. Em 2014, fiz uma longa entrevista com ele, encomendada para figurar num dicionário brasileiro de comunicação, com organização do pesquisador José Marques de Melo (1943-2018). O projeto não vingou. Para piorar, Luhm não autorizou que eu publicasse a conversa em outro formato, num perfil, por exemplo. Tinha seus motivos.

Acometido por um AVC, logo em seguida, deu a entender que andava aborrecido com as limitações mecânicas impostas pela doença. Preferia o silêncio de sua casa das Mercês, ao lado de Fanny, companheira de quase sete décadas, dos três filhos, netos e das cachorras Tuca & Truddy, ambas, agora, em luto indisfarçável. Luhm partiu em absoluta discrição, como era de seu feitio, permanecendo um nome à espera de um verbete.

Harry Luhm (pulemos o “Orloff”, que lhe causava caretas de repulsa) construiu uma sólida carreira como dentista. Formou-se na UFPR, no ano de 1954. Atendia em endereço então nobre, a Galeria Lustosa. Depois se mudou para a Avenida Manoel Ribas, onde, sabe-se, formou clientela tão numerosa que podia se dar ao luxo de dispensar candidatos à broca. Além da vizinhança, tratava das irmãs vicentinas – as da Medalha Milagrosa –, e aos capuchinhos, o que fazia o consultório parecer uma pequena sucursal do Vaticano a caminho de Santa Felicidade. Luterano pouco devoto, Luhm foi ecumênico e liberal em todos os campos da existência.

Tratou cáries e quetais até chegar aos 70 anos, quando entregou de vez o negócio à parte de sua prole que o seguiu na carreira. Estava, enfim, livre para se internar num puxadinho que tinha no fundo do quintal, seu estúdio apinhado de moviolas, câmeras, vídeos, maquetes e traquitanas, para onde costumava se dirigir sempre que o último paciente se despedia, agradecido por poder tirar a tipoia ao redor da cabeça. Ali estava sua verdade: o prestigiado dentista Harry Luhm era, sobretudo, um homem de cinema, arte da qual se tornou um operário. Restaurou incontáveis filmes antigos e telecinou – com artesania – fitas e mais fitas, garantindo que não sumissem no pó da história. Não há uma contabilidade exata e possível sobre seu legado, uma pena e uma dívida.

***

É temerário falar de Harry sem antes tratar de seu pai, o comerciante Erich Luhm, dono de uma refinada loja de perfumes, de nome peculiar: “Lá no Luhm”. Na primeira metade do século 20, o negócio, como se dizia, funcionava na Rua Riachuelo com a Tobias de Macedo; e depois na Rua XV, 460 – em frente da finada Livraria Ghignone. Foram tempos áureos. As atendentes do estabelecimento tinham fama de serem mais bonitas que as aeromoças da Panair. Erich – dono de olho clínico – orientava a maquiagem das colaboradoras, postura ao balcão e, reza a lenda, podia fazer de uma jovem estrábica e sem graça uma diva da Rua das Flores. “Ele adorava transformá-las”, conta a nora Fanny.

É do anedotário da época que as balconistas de “Lá no Luhm” costumavam fazer perguntas-chave aos clientes manjados por terem casos extraconjugais, de modo a evitar crises passionais na Curitiba de menos de 300 mil habitantes. Em sociedade, tudo se sabia: “É para presente?”, diziam. Se “sim”, a resposta funcionava como senha. Ou “é de primeiríssima linha ou para sua esposa”, de modo a facilitar a vida dos ricaços que compravam ali regalos “de primeiríssima” para suas amantes.

Além do evidente tino para os negócios e para a prevenção de terremotos familiares, Erich tinha personalidade exuberante. Não havia concorrência. Foi graças a um dos surtos de brilhantismo do pai que Harry descobriu que havia algo mais fascinante que provincianos industriais e seus romances proibidos – mantidos à custa de fragrâncias parisienses compradas no “Lá no Luhm”.

Em 1939, durante a inauguração do Cine Luz – então na Praça Zacharias –, o patriarca teve a ideia de borrifar na sala litros e litros do perfume de flor de maçã da marca Helena Rubinstein. O evento ocorreu durante a projeção de À meia-noite, com Don Ameche e Claudette Colbert, conhecida como a estrela sem pescoço. A estratégia de marketing exigiu muita logística e cara de pau. Mas deu certo. A água de colônia com tampa em formato de maçã ganhou lugar de honra por três décadas nos toucadores das chamadas “mulheres de fino trato”. E Harry, então com 9 anos, escalado para a cerimônia de borrifação junto com todo o casting da loja, encontrou-se de vez com a sétima arte. Contava ter desistido ali de seu sonho de piá – ser maquinista da estrada de ferro.

Enquanto Colbert flertava com o galã Don Ameche, ele viu a porta entreaberta da sala de projeção, sob comando do casmurro Adelino Sabadan. “Fiquei petrificado”, disse, na entrevista nunca publicada. Virou voyeur, uma matinê atrás da outra. A magia de como nascia a imagem em movimento o pegou de tal jeito que, para explicar o que lhe aconteceu, costumava recorrer ao filme Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, sobre um menino que se torna ajudante de um projecionista. Em alguma medida, era também a sua história. Não à toa, mantinha o cartaz do filme de Tornatore em seu estúdio.

Não muito tempo depois do episódio, Luhm filho descobriu o escritório da Paramount da Rua XV. Passou a ciscar por ali, atrás de negativos que saltavam dos rolos de filme – os cacos – à medida que os projetores rolavam e esquentavam. Nem todas as sobras podiam ser remendadas. Harry brincava de ampliar essas imagens, em engenhocas malucas que ele mesmo inventava. O esforço lhe foi útil. Adulto, e já firmado na odontologia, conseguiu bolar apetrechos para passar filmes em 8 mm, 16 mm e 35 mm para VHS, minorando as deficiências técnicas desse processo, a chamada cintilação. Disseram-lhe que era impossível – aqui e na Rua Santa Efigênia, em São Paulo, onde procurava peças para a empreitada. “Eu sou dentista”, respondeu a um dos que o desanimaram, sugerindo que quem tratava um dente podia qualquer coisa. Graças às habilidades de Luhm, a transposição de um sistema para outro beirava a perfeição, para despeito geral.

***

Erich, o pai, ajudou a formar o Harry-professor-Pardal. Deu-lhe na adolescência um projetor e, depois, uma filmadora. Também lhe deu uma dura, ao ver as notas do filho despencarem no Colégio Santa Maria, onde estudou, na razão inversa ao crescimento do interesse pelo cinema. Aprumou-se. Fez curso superior. Ganhou pencas de pacientes. E, paralelo, uma vaga na confraria de cinéfilos da época, gente bamba como o projecionista Zito Alves, o dono de cinema Jorge de Souza – o Jorginho do Cine Morgenau –, o jornalista Luiz Renato Ribas e o cineasta e escritor Valêncio Xavier, para citar alguns dos amigos que, como ele, reverenciavam filmes mudos tanto quanto belezuras do naipe de Hedy Lamarr e Maria Félix.

Fez por merecer a vaga na trupe. Por 18 anos, Harry projetou clássicos no cineclube do Concórdia, em parceria com o médico cinéfilo Dieter Garbers. Restaurava cada rolo, com precisão de anestesista. Vê-lo falar do dia em que passou Casablanca era o que havia. Mesmo quando as sessões deixaram de ser concorridas, permaneceu na lida. Não o deixavam sossegar. Espalhou-se por aí que fazia a transposição dos filmes. Recebia pencas de latas, vindas de tudo que é canto. Podiam ser obras de valor notável, como obras de Aníbal Requião e João Baptista Groff; um jogo no Estádio Durival de Britto em 1948; ou registros de uma festa de debutantes em Foz do Iguaçu. Não negou fogo.

Há poucos anos, quando o AVC afetou, o estúdio caseiro ganhou caixas. Restava a Harry os encontros com amigos veteranos – o grupo batizado de Os Cotonetes (foto), formado por Conrad Holdorf, Max Conradt, Ralf Kyrmse, Claudio Hatsbach, Armando Kolbe e Neif Saleh – único não germânico. Reuniam-se aos sábados de manhã para falar alemão e dar risada – uma especialidade do econômico Harry, mestre em tiradas sensacionais. Conta-se que na juventude, ao prestar serviço militar no NPOR, disputava com o futuro pintor Fernando Velloso, seu colega de caserna, quem contava as melhores piadas, não raro cabeludas. Aqueles que conhecem Velloso sabem que o páreo foi duro.

Representante do espécime “levemente mal-humorado-engraçado”, o primeiro contato com Harry esbarrava na pronúncia do seu nome. Assim que alguém o chamava com sotaque inglês, algo como “érri”, ele acionava o gatilho e devolvia com um sonoro e aberto “AR-RI”. Mesmo no hospital, corrigiu todas as enfermeiras e médicos que o julgavam homônimo do príncipe Harry ou de Harry Potter. A prontidão linguística se estendia a outras situações. Mostrava-se impaciente com os erros de português. E tinha pouca pachorra para o que lhe parecia óbvio. Bem sei. Certa vez, em busca de uma “deixa” numa entrevista, perguntei-lhe “por que os alemães gostavam tanto de bicicletas”. Devolveu-me com uma instantânea carraspana: “Porque é inteligente”.

A propósito, do vasto “anedotário Luhm” consta o dia em que uma amiga da família telefonou mais de uma vez em busca de Fanny – exímia jogadora de golfe, mesmo passada dos 80 anos, dentre outras atividades que sempre a colocam da porta da rua para fora. Nunca foi problema entre eles, um casal à prova de grude. “Harry, tua mulher não para em casa?”, perguntou a conhecida do outro lado da linha. “Nunca. Mas ela sempre volta”, sentenciou. Segundo consta, foram felizes para sempre.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]