José Carlos Fernandes

Em nome do pai e do filho

José Carlos Fernandes
21/10/2018 20:00
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Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

“Como são belos sobre as montanhas os pés do mensageiro que anuncia a felicidade, que traz as boas novas e anuncia a libertação, que diz a Sião: Teu Deus reina!” (Isaías, 52, 7)
“Professor, o senhor é…?”, perguntou um acadêmico de Direito ao advogado Dalio Zippin Filho, 76 anos, depois de vê-lo discursar, no alto de um carro de som, durante uma Parada da Diversidade – a “Parada Gay”. Quem conhece o doutor Dalio pode imaginar a resposta que deu, com a naturalidade de quem se espreguiça: “Claro que sou”. E continuou sua aula, com um abraço pro gaiteiro. Não poderia agir de outra forma: “Se trabalho com direitos humanos, não posso fugir da raia. Somos iguais”, avisa o sujeito mais batuta da paróquia.
Não é a primeira vez que a bandeira do arco-íris mexe com a rotina de Dalio. Carregou-a, inclusive, mais de uma vez, em manifestações pelas ruas. Algumas, ao lado do médico e militante negro Nizan Pereira – “com vantagem para o Nizan, que é alto e impõe respeito. Já comigo, baixinho…” Certa feita, depois de um espancamento de travestis no Centro da capital paranaense, Dalio abriu as portas de seu escritório – então numa esquina da Barão do Rio Branco com a XV –, bem cedinho, para receber as agredidas – uma dezena delas. “Dá para imaginar a cena?”, provoca o sátiro. Em meio a saltos quebrados, maquiagem borrada, sangue, hematomas, vozerio e choro de humilhação, chegaram os clientes marcados para aquele dia. Todos em ternos e pastinhas 007. Escafederam-se, julgando terem encontrado a Porta do Inferno. “Acusaram-me de trabalhar com bichas loucas”, protesta.
Pouco se importou com o prejuízo. Era amor antigo. Em meados dos anos 1990, Zippin assumiu a causa da extradição do britânico David Harrad – companheiro do ativista LGBT paranaense Toni Reis, fundador do Grupo Dignidade. Daí para a frente, virou patrício. Uma das brigas mais aguerridas que abraçou foi a inclusão da militante trans Marcela Prado – hoje nome de uma ONG – num grupo de trabalho da OAB. “Mas Dalio, por favor, é um traveco…”, reprovou-o um colega de ofício, à beira de um chilique, como um cruzado em missão. Nessas horas perde a pose de judeu acidental – digno dos filmes do Woody Allen – e solta os cachorros. Foi o que fez. Marcela ficou.
Ainda que repleta de passagens mirabolantes, a defesa das causas LGBT está longe de ser sua única razão de viver. Já lhe trouxe tamanhas dores de cabeça, inclusive, que pensou em pedir que riscassem seu nome do caderninho de simpatizantes. Mas a Inês é morta. “O Toni Reis estampa as minhas fotos em todas as publicações do Dignidade”, debocha Dalio, pai de seis filhos, avô de três netos, dois casamentos. Não é um privilégio de Reis. Desafio: quem se der à tarefa de listar em quantas causas anda metido há de penar. Infância e adolescência vulneráveis? Sim. Sistema prisional? Até o pescoço – é presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Paraná. Crimes do trânsito? Como não – sua filha mais nova foi vítima de um deles. Injúria racial? Benza Deus… não passa semana sem atender um telefonema. Seu celular é de utilidade pública. Em tempo – o cidadão DZP lutou pela redemocratização do país e tem seu RG inscrito na implantação da cultura da justiça e paz.
Paira a curiosidade de quando nasceu o “Dalio dos direitos humanos”. Pululam hipóteses. Pode ter sido em dezembro de 1959, ocasião em que o jovem Zippin atuava como… policial militar. Ao chegar ao quartel, seus superiores o convocaram para fazer guarda na chamada “Guerra do Pente”, o célebre levante popular – de cunho xenófobo, contra os árabes – que transformou a Praça Tiradentes num campo de batalha, por dois dias. Ao chegar, Dalio viu um manifestante estirado no petit-pavê. Carregou-o qual um cirineu, até uma ambulância. Um repórter o fotografou e o flagrante virou capa do jornal Diário do Paraná. A corporação estrilou. Perguntaram-lhe se aquilo lá era jeito de tratar bandido. Defendeu-se, alegando se tratar de um necessitado de socorro. Quase pegou cana. Logo percebeu que faria mais se seguisse outra carreira – a de advogado, como o pai, de quem herdara o nome: Dalio Zippin.
As imagens dos dois Dalios, pai e filho, são grudadas no superbonder. Um continua o outro – é bíblico. “Ainda hoje, diante de um impasse, penso no que ele faria”, diz. Foi assim quando preferiu atender as travestis aos clientes. Quando discursou na Parada Gay. No momento em que abraçou a mais insana das lutas – os direitos dos presidiários. “O debate mundial dos direitos humanos começou em 1948. É triste ver esse retrocesso. Estão pregando violações. Mas não vou me aposentar. No dia seguinte a esta eleição, vou estar a postos”, avisa. Era o que Dalio pai faria.
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Os Zippin vieram de um ponto da antiga Bessarábia. Bateram ponto na Argentina e em São Paulo, até se fixarem em Curitiba. Na primeira metade do século 20, tinham uma fabriqueta de colchões e uma chácara na Avenida Bispo Dom José, bairro Seminário, da qual sobraram poucas árvores. O que aconteceu na propriedade faria a delícia de um cineasta, abriria o apetite de um romancista.
À revelia da origem judaica, Dalio pai se tornou espírita fervoroso, adepto de uma concepção universalista da religiosidade. Revelou-se um sujeito dado a gestos extremos de humanidade. A tentação de compará-lo com outro judeu ilustre emigrado para o Brasil é tamanha: o médico e indigenista Noel Nutels. Pareciam-se no desapego, no afeto e por tirarem tudo fora dos eixos, como crianças sempre loucas para brincar.
Alguns aperitivos. Em meados dos anos 1950, incomodado com a situação de um reformatório juvenil instalado na Ilha das Cobras, no Litoral paranaense, Dalio pai convocou uma comitiva de notáveis e armou uma visita surpresa ao local. “Foi um horror. Encontramos jovens de 18 anos dividindo o catre com meninos de 12”, lembra Dalio Filho. O flagrante surtiu efeito – o juiz devolveu os internos a suas famílias, exceto 22 deles, cujos responsáveis, como se dizia, “saíram para comprar cigarros”. Pois Dalio pai os levou para a chácara do Seminário, até lhes arrumar emprego. Um dos guris virou “de casa”, por anos. “Ele não tinha medo”, conta Dalio, ao retirar memórias do sótão. Lembra que ter um mendigo à mesa era rotina. Assim como sair nas noites frias, para entregar 50, 100 cobertores nas marquises. “Cheguei a vê-lo cortando as unhas de pessoas que encontrava pelas ruas.” Dói, ainda hoje, recordar que o pai ficou cinco dias preso – depois de protestar contra a pilhagem e queima, pela polícia de Vargas, de livros da comunidade alemã e italiana, nosso Fahrenheit durante a Segunda Guerra.
Ficava chapa dos desvalidos. Uma das situações que mais angustiavam era quando lhe pediam esmolas. Achava o último degrau do abandono – o que o levou a criar uma espécie de “salário para pobres”. Indicava o dia em que os necessitados deviam comparecer ao escritório para apanhar uma ajuda. Bastava chegar, dar o nome e pegar o dinheiro. Não há registro de que tenha se arrependido do investimento.
A propósito, uma das anedotas em torno do judeu espírita universalista Dalio e seus miseráveis se deu num café da Rua XV. Sem um puto tostão para levar à mulher, Lili, pediu-o a um amigo. Ganhou 50 mangos, em consignação. No ato, um sem eira nem beira lhe pediu um troco. Pois Zippin pai meteu a mão no bolso e doou o que acabara de receber. Os amigos lhe deram uma dura, ao que respondeu: “Vejam bem – pro Dalio Zippin qualquer um empresta dinheiro. Para este cara, só o Dalio Zippin”. “Era um mão aberta” – resume o filho. Comove-se: “No velório dele [em 17 de outubro de 1981], encontrei dezenas de pessoas que ele alimentou e as que encaminhou para adoção…”
Essas passagens se somam a um outro episódio da cartografia familiar. Na infância, Dalio e o irmão sofreram uma intoxicação por gasogênio. Tinham 2 e 4 anos, respectivamente. Desmaiaram. Lili, que era enfermeira, fez todos os procedimentos no filho mais velho, sem sucesso. Ficaram sequelas. Jovi, um homem negro agregado aos Zippin, cuidou de restabelecer a respiração de Dalio. A experiência de ter sobrevivido – graças à perícia de um “homem de cor”, como se dizia – virou para ele uma espécie de recado do destino. A lembrança do episódio algo trágico, repetida por décadas, reforçou a convicção de que deveria brigar pelos necessitados e não esquecer o que a vida lhe deu. Assim será.