José Carlos Fernandes

Em tempos de paixões tristes

José Carlos Fernandes
29/03/2020 19:00
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Lembro bem. No início dos anos 1980, quando a Aids
deixou o mundo de canelas para o ar, líamos tudo a respeito, com apetite de
estivador. Boa parte da população, supunha-se, transava. Hipóteses saíam das
cartolas feito coelhos – muitas delas, barbaridades que nem o mais fantasioso
dos ficcionistas poderia imaginar. Havia manuais ligeiros, em papel jornal, à
venda nas bancas, a preço de ocasião. Compilavam o horror – em meio a
historietas de banheiro público e basfonds,
para ilustrar e distorcer. Eram de deixar noites sem dormir, tamanha a crueza do
dedo apontado para os “devassos”.
Muitos dos equívocos naturais daquele momento – uma
pena – permanecem entre os senões que perseguem até hoje os contaminados pelo
HIV. Mesmo assim, bolas ao alto, nunca se soube tanto sobre uma doença em tão
pouco tempo. Muitos morreram, mas a ciência e a solidariedade operaram milagres.
Num primeiro momento, a Aids soava como problema de gente descolada – artistas, ricaços e vadios. Parecia dizer respeito a tipos saídos de uma cena qualquer do soturno Parceiros da noite (1980), de Willian Friedkin, estrelado por um jovem Al Pacino – policial infiltrado num clube sadô de Nova York, do qual gays libidinosos brotavam do gelo seco. O filme mostrava não só as sexualidades marginais, mas como se comunicavam nos subterrâneos, dando uma capoeira nos que juravam ser capazes de calá-las. As minorias, mostrou Friedkin, tinham um idioma, e nem a Era Reagan, ainda por começar, lhe passaria a borracha.
Assim como aconteceu com o HIV, também cabe agora perguntar como será quando a gripe chegar aos mais pobres. Vai ser sem delicadeza
O cinema, a propósito, ajudou a estancar o sangue em
torno da Aids. Longas como Filadélfia
– estrelado pelo então menino de ouro de Hollywood, Tom Hanks – colocaram a
epidemia na mesa de jantar. Foi preciso falar dela, até porque nas classes
médias e altas alguém sempre conhecia alguém que tinha engrossado a fileira de
mortos e feridos. Buscava-se num e noutro os sinais do AZT – a pele escurecida,
os cabelos rareados. Foram tempos difíceis embalados tal como hoje por “paixões
tristes”, expressão mais-que-perfeita cunhada pelo filósofo francês François
Debet.
À época, chamava atenção o alerta dado pelos mais
antenados – o que será, que será quando o HIV chegar aos mais pobres e a outros
grupos que não apenas os homossexuais: as mulheres e os idosos, por exemplo.
Havia quem desdenhasse, pois não fazia sentido a essa turma que uma mãe pudesse
ser contaminada, um velho se relacionasse ou que um operário fizesse sexo
heterodoxo. O tempo mostrou que o discurso em torno da síndrome era uma
sucessão de erros – e o flagelo se democratizou, sem discriminação de sexo,
gênero, idade ou classe social. Não fosse o filtro do preconceito – que coube feito
uma luva para despistar aquele momento –, o destino de milhares seria outro.
***
Os paralelos entre a Aids e o coronavírus beiram o despropósito, eu sei. A primeira passa pelo comportamento e pela cultura – e sobretudo pelos tabus do sexo. Também foi para escondê-lo da luz do dia que a humanidade correu tanto para remediar o problema, ainda à espera de um final feliz. Os vírus habitam outra seção da loja de departamentos. Seu status é o da Peste Negra, da varíola, do cólera, do ebola ou qualquer outro diabinho microscópico. A literatura se encarregou de traduzir essas calamidades públicas como um produto da melancólica Idade Média – à revelia de os estudiosos a descreverem como longa, porém com encantos. Chegam até nós como algo que ficou no passado, “tipo” a morte por apendicite. Já os vírus letais ganharam aura de ficção científica. Habitam o imaginário como uma maquinação de cientistas ressentidos, de cuja maldade somos redimidos graças à ação de heróis de quadrinhos que agem com a presteza de um bombeiro. Não à toa, a Covid-19 traz, já, no currículo, tantas narrativas conspiratórias, cujos enredos devem servir de pasto a Hollywood por um bom tempo. O real tem nervuras.
Mas há algo em comum entre os dois flagelos. Assim
como aconteceu com o HIV, também cabe agora perguntar como será quando a gripe
chegar aos mais pobres. Vai ser sem delicadeza. É uma imagem que causa
calafrios, como se nuvens espessas se formassem, aproximando-se de forma inclemente,
justo sobre os que não podem se defender – como numa longa tomada de um filme
conceitual, algo como o belo e terrível Koyaanisqatsi (1982), de
Godfrey Reggio, com música do Philip Glass.
Dia desses, um dos anônimos da periferia de São
Paulo, autodenominado “Berinjela”, transmitia pelo celular o aperto dentro dos
trens. Bastava um espirro para o genocídio. Seu protesto nos provoca
impotência. O mesmo se dá ao ler reportagens que mostram a proximidade entre as
pessoas da mesma família nas ocupações irregulares. A densidade demográfica de
uma sub-habitação escapa à lógica Barra da Tijuca que rege o atual governo. E,
feitas as devidas ressalvas à fala enviesada do presidente da República, no
pronunciamento da última terça-feira, a suspensão das aulas em escolas que atendem
crianças e jovens favelizados os coloca muito perto do pior dos mundos – o
confinamento numa casa minúscula e insalubre. Difícil arbitrar o que será pior.
A nuvem continua andando. Não é difícil prever que
as histórias sobre viajantes que voltaram contaminados de uma viagem à Itália
ou à China serão infinitamente menos volumosas diante das que virão das imensas
zonas populares do Brasil. Não caberão no noticiário. Não haverá repórteres o
bastante para contá-las. Basta fazer contas. Na civilizada Curitiba são mais de
250 ocupações irregulares – um a cada cinco moradores da capital vive em ninhos
que não merecem este nome. Imaginem no resto da Terra Brasilis...
De que adianta essa reles constatação? Para alimentar a catástrofe? No momento, se presta a bem pouco. Estamos todos ocupados de salvar a louça da cristaleira enquanto a água sobe pelos rodapés e a ventania arromba as janelas. Mas assim como aconteceu nos anos 1980, quando se percebeu que a Aids não dizia a respeito apenas aos “jovens alegres”, o coronavírus aponta para a urgência de se repensar tudo, do piso ao teto. Quem tem boca e cabeça sem miolo mole é que está dizendo. Em texto recente publicado nos jornais, o sociólogo italiano Domenico de Masi – com a autoridade de quem entende de classe média mais do que ninguém, afinal, esboçou para ela a teoria do “ócio criativo” – chamou atenção para a evidência de que, do jeito que está, não pode continuar. Ele se refere à organização do mundo pós-Covid-19, queiram os negacionistas histéricos ou não. Sugiro confiná-los num zoológico, mas esse é outro papo.
Assim como aconteceu nos anos 1980, quando se percebeu que a Aids não dizia a respeito apenas aos “jovens alegres”, o coronavírus aponta para a urgência de se repensar tudo, do piso ao teto
Muita, mas muita gente vai espernear diante da
agenda de discussões que nos espera – o papel do Estado, o embuste do “Estado
mínimo”, a desigualdade a níveis insustentáveis, a uberização do trabalho, a urgência
de políticas de hospitalidade, a taxação da riqueza, as políticas juvenis,
dentre outras cositas levantada por sir
Tony Atkinson, um dos profetas do nosso tempo. Tem quem dê um rim, se for
preciso, para que tudo a volte a ser como antes: o conforto Netflix, a imensa tevê
de tela plana na sala com cara de hotel, os amigos que pensam igual – de preferência
teorias bem primárias –, as barriguinhas satisfeitas nutridas pela hedionda
tese da meritocracia e o resto que se exploda, sem fazer as contas sobre o
tamanhão a que se chama resto.
Confesso: voltei a acreditar no Juízo Final e no
Inferno depois de tantas manifestações de ódio, pois para algum lugar a alma dos
insensíveis crônicos e dos tapados convictos terá de ser despachada, de modo a
tornar a eternidade minimamente respirável.
Veneno à parte, me alisto no rol dos otimistas. 1. A pandemia chega ao Brasil com o
aprendizado pela perda sofrida em outros países. Podemos ter uma leve vantagem;
2. Cientistas do mundo inteiro – e,
juntando todos, não devem ganhar o salário do Messi, do Neymar ou do Cristiano
Ronaldo – estão unidos em rede, na captura de um medicamento que detenha o
vírus. Hão de encontrar; 3. No mais,
o humano em nós se sobrepõe ao espírito de porco dos plantonistas da estultícia.
Não sei em que proporção a sanidade se instala, mas quem sou eu para duvidar do
sujeito que faz as compras para um vizinho, que vela pelos idosos, dos pios que
oram, dos que pesquisam, dos que protestam e até dos que batem no peito, num
pedido de perdão, ao se darem conta do pecado da ignorância voluntária.
Bradam os céus.