José Carlos Fernandes

A equação urbana dos Floriani

José Carlos Fernandes
25/02/2018 20:00
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Foto: Felipe Rosa/Tribuna do Paraná / Arte: Felipe Lima

Faz uma década, os pais do designer e estudante de Psicologia Gabriel Floriani, 32 anos, compraram um estacionamento. Fica bem localizado – à Rua Doutor Pedrosa, 333, um dos raros endereços do Centro em que Curitiba ainda se parece com ela mesma. É grande – algo como 3 mil metros quadrados, espaço o bastante para 150 carros. Melhor, “só praia”, diriam alguns condutores aliviados.
A clientela é garantida. Depende do lugar como de oxigênio. Só falta bater continência. Estacionar e se conectar, não nessa ordem, são ações que se somam às necessidades básicas, como comer, dormir e transar. Além dos estúdios e escritórios – que deram de brotar em espigões naquelas divisas –, há prédios antigos com carros demais para garagem de menos. Para muita gente, o Floriani virou o quintal de casa, com o bônus da hospitalidade catarinense: os donos são da região de Lages.
Antes que o leitor tome este texto por uma peça publicitária, melhor informar que o ramo de negócio estacionamento não alterava a pulsação de Gabriel. Tampouco lhe fazia chacoalhar as pulseirinhas, ou apressava sua fala mansa. Como ainda se diz, ele é um ripongo, merecedor de certificação. Aos fatos.
Os aproximados 15 quilômetros entre o bairro da Boa Vista – na Zona Norte – e o negócio da família são cruzados de bicicleta. Nem que chova e os termômetros despenquem – o que, por aqui, é uma cláusula pétrea. Acima de decorar o nome de modelos de automóvel e seus acessórios, o moço vive de olho é nas bicicletadas, nos cafés da manhã com ciclistas na Praça Baden Powell, nas lutas de ativistas como o vereador Goura, seu chapa.
Mesmo com toda a gana de hastear as bandeirinhas, passar sabão em quem não respeita o 1,5 metro de distância entre o carro e a bike, e fundar um mundo sobre duas rodas, Gabriel tem de bater ponto no “Floriani” às 8 da matina – com a camisa polo da firma, combine ela ou não com seus calções solares e os tênis lanhados pelo asfalto. Na vida ninguém paga meia, escreveu um dia o nosso Leminski. É o caso.
Aconteceu que Gabriel – o ciclista e cicloativista que gerencia o Estacionamento Floriani – deu de transformar seu posto de trabalho num “lugar”, no sentido antropológico da palavra, explorado com conceitos e rodapés por gente bamba como Jacobs, Lefebvre, Mougé, Tuan, Mongin. Um milagre da selva de pedra: onde reinava o frenesi de manobristas e a impaciência dos motoristas – ocupados da inglória tarefa de arrumar lugar para uma bagagem diária que pesa uma tonelada e ocupa 10 metros quadrados –, passou a imperar o “espírito das coisas”. Não se achou ainda expressão melhor para designar a presença de alma onde parece existir apenas matemática aplicada. Pois é.
O proprietário Zair Floriani, vulgo pai, no começo estranhou as invencionices do seu piá. E no começo – há coisa de quatro anos – Gabriel teve a ideia de criar uma horta vertical em garrafas pet. Coisa pouca. Não queria incomodar. Sabe aquele cantinho nos fundos? Pois ali estava ótimo, havia luz o bastante para um pé de rúcula. Não demorou nem dois expedientes para que os fregueses lhe pedissem um maço de salsinhas, com cebolinha, por favor – nada que lhe fizesse falta.
Programada para a invisibilidade e insignificância, a hortinha passou a ocupar de tal forma o centro da conversa que teve de ser transferida. Veio para a frente do “Floriani”, de um ponto cego onde, com pescoço esticado, se pode ver a tradicional Confeitaria Holandesa e o frontão estiloso do Ibis Hotel. A horta ampliada e rebobinada – agora horizontal e equipada com estrados coloridos em riba dos canteiros – roubou a vaga de sete carros. Ao custo de R$ 7 a hora, vezes oito (horas), o prejuízo-barra-investimento beira quase R$ 300 por dia, R$ 9 mil no mês. Nada que aflija os Floriani, que criaram um Parque Barigui Hórti e de bolso, abrigo de 15 espécies – incluindo berinjelas e tomates, “que começaram a dar”. Deviam patentear.
O primeiro ganho é que parte da clientela pegou mania de ciscar por ali, atrás inclusive de xepas, que Gabriel oferece debaixo do mantra vindo dos ancestrais: “Quer levar? É para não se perder”. Funciona. Mesmo o mais urbano dos “estacionantes” se diz atraído pela ausência de agrotóxicos. Em vez de chaveirinho promocional, um verde pro jantar. Além de que houve otimização do território. No sentido contrário à massa de estacionamentos do Centro, do lado da horta foram instalados bicicletários, aos quais se chega por uma ciclofaixa de efeito estético e moral. Tem dez passos, só. É fato que são poucos os mensalistas – apenas dois, três – mas a turma da bike faz propaganda gratuita e eficaz do estabelecimento, à moda de todas as pequenas e grandes revoluções da humanidade.
Deve-se registrar que a horta comunitária do estacionamento se tornou uma instituição. É ali que as crianças se surpreendem ao descobrir que rabanete não nasce na gôndola do supermercado. Deparam-se com a beleza franciscana de um pé de couve. Os pais podem lhes dar satisfações sobre o ciclo básico da natureza enquanto seus pets correm soltos pelo… “Floriani”. Sim, os pets. Faz parte do pacote. Aos sábados, em geral, proprietários de lindos lulus aproveitam a vastidão pampeira e soltam os cachorros nessa que é a nova muralha medieval, o estacionamento. Não raro os bichos se estranham, incluindo os do dono, Tito e Paçoca. Nada grave – os latidos não incomodam mais do que a orquestra de alarmes que nos atazana o juízo.
Cachorros, alfaces e bicicletas… a fábula digna de um Guillermo Del Toro não acaba aqui. Depois de tamanha força-tarefa para despertar o jardineiro que dorme no peito de cada habitante da urbe, nada custava acordar também o leitor. Gabriel decidiu se somar aos praticantes da biblioteca anárquica. Dessa vez, não encontrou resistência. Com os préstimos de um marceneiro amigo, o balcão em que toda gente paga suas diárias ganhou um puxadinho caprichado. Cabem ali algo entre 150 a 200 livros, que vão e voltam sem patrulha, no melhor do estilo “livro foi feito para voar” – máxima propagada em CWB pelo jornalista Alessandro Martins. Tem literatura cor-de-rosa, como Danielle Steel; Jack London; Camus; obras em outras línguas; um disputado volume sobre a série Game of Thrones e títulos que custam uma gaita na Estante Virtual, como Era dos Extremos, de Eric Hobsbawm. Um casal que estacionava por lá semana passada desatou a falar do pensador britânico, com a animação de dois acadêmicos de História. Conversa boa, com conteúdo, destituída do cultivo ao ódio, a granel, que deu de embalar os papos hoje em dia.
A cena se tornou comum. “Tem quem volte aqui só para devolver um livro. Outros pedem prazos longos… Para minha surpresa, a estante nunca fica vazia”, conta Gabriel, sobre o que chama de “Estacioteca Floriani”, nome inspirado no projeto Tuboteca, implantado pela Fundação Cultural de Curitiba nas estações de ônibus. Na prática, a biblioteca do estacionamento funciona nos moldes da experiência pioneira no gênero da capital, a estante livre da padaria Pote de Mel, perto do HC, nascida dentro e em cima de um freezer desativado. Também dialoga com a filosofia da Freguesia do Livro, iniciativa das fonoaudiólogas Josiane Mayr Bibas e Ângela Duarte. A dupla se ocupa de fazer chegar cada título descartado por seus donos a quem de fato interessa. De quebra, mostram – com soluções domésticas – que qualquer canto pode receber material de leitura.
Em tempo – a “Estacioteca Floriani” não tem um best-seller, mas Gabriel não deixou de notar o apreço dos leitores pelo exemplar de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Os empréstimos não são controlados, nem cobrados – basta repor com outro exemplar. Mas este clássico brasileiro foi e voltou várias vezes. O gerente – que não descarta ampliar a vocação cultural e alternativa do local – deveria promover ali um colóquio popular sobre a traição – ou não – de Capitu. Nossa heroína seria julgada no melhor dos mundos: ao pé das hortaliças e das bikes, com as crianças e os animais à solta no quintal, por cidadãos às voltas com a dor e a delícia da nossa condição urbana, demasiadamente urbana.
Texto dedicado à casa da Rua da Paz, 37, onde viveu a família Osna. Segundo consta, demolida para dar lugar a um estacionamento.