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“Eram só crianças”
| Foto: Atila Alberti/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Quem se der ao trabalho de abrir jornais curitibanos das décadas de 1950 e 1960 há de se deparar com três regiões onipresentes no noticiário. Elas atendem pelo nome de Vila Capanema, Vila Parolin e o algo dúbio “Inferninho”. Essas três comunidades encontraram seu destino, nos mais de 65 anos que separam o ano em que estamos do ano de 1953 – quando a Gazeta do Povo registra pela primeira vez sua preocupação com o surgimento das favelas na capital paranaense.

O Capanema virou Jardim Botânico e a zona favelizada se tornou o parque que dá nome ao bairro, hoje cartão postal número 1 da cidade. Gourmetizou, como se diz. O que sobrou do processo de desfavelização foi por tempos chamado de Vila Pinto, até ser rebatizado de Vila das Torres – um encrave de 6,5 mil moradores entre os bairros do Prado Velho, Rebouças, Guabirotuba e o próprio Botânico.

A Torres compensa as agruras impostas pelo tráfico com uma eletrizante organização comunitária, na qual é modelo exportação. O “Inferninho”, por força da atuação das Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs, se diluiu no próspero bairro de Santa Quitéria, no qual está inserido. É uma baixada, mais empobrecida, mas a anos-luz da violência que lhe reservou, um dia, tanto destaque no noticiário policial. Na última vez que lá estive, em busca de quem ainda lembrava do apelido do passado, fiquei sabendo que briga, ali, só se for de casal corroído de ciúmes. Quanto à Vila Parolin, não é para amadores.

Não é preciso ser um expert para constatar a naturalização da violência contra jovens, pobres e negros

Existem dois Parolins – o de cima, com belas casas e um paraíso para vendedores de alarmes e cercas elétricas. E o de baixo, às margens do Córrego Guaíra. Cada uma das partes soma 6 mil habitantes, brindados com algumas das principais vias de acesso da cidade – como a movimentada Rua Brigadeiro Franco. Curitiba encontra no Parolin o seu ponto final. Todo mundo passa pelo bairro. O que vê? Não há melhor exemplo de “luta de classes” no cenário urbano. Os reassentamentos, promovidos a partir de 2006, em projetos do governo federal, em parceria com a Cohab, não foram o bastante para diluir as desigualdades. Barracões de carrinheiros convivem com mandatários trajando preto – é de dar medo. Tirou-se moradores da beira do rio, os becos foram abertos e saneados, inibindo o “escurinho” que tanto beneficiava o tráfico, mas feridas não fecham assim tão fácil.

Semana passada, o mais antigo endereço dos deserdados de Curitiba pontificou outra vez o noticiário. Na sexta-feira, 27 de setembro, quatro jovens da comunidade foram abatidos num confronto com a Polícia Militar, no bairro Hauer. Estariam envolvidos no roubo de um carro. Ao contrário da Vila das Torres – rápida e hábil em fazer protestos para acordar a população –, a Vila Parolin é dada a silêncios, por motivos que causam calafrios em qualquer interessado em sociologia urbana. Mas dessa vez a comunidade saiu no grito. Os moradores fecharam vias, como a Linha Verde, bateram boca na porta do Instituto Médico Legal, posaram para fotos, estampando cartazes nos quais pediam justiça. “Eram só crianças”, dizia um dos manifestos. “Balas perdidas em corpos pretos”, mostrava outro. Eduardo Damas, um dos assassinados, tinha 21 anos. Os demais eram adolescentes: os irmãos Felipe e Gustavo Bueno de Almeida tinham 16 e 14 anos, respectivamente. Elias Leandro Pires Pinto somava 17 anos. Na esteira dos protestos, emerge um velho lamento – por que a sociedade e as autoridades se calam diante da morte de pessoas “com tudo pela frente”. Tristes trópicos, os que desprezam a mocidade.

Não é preciso ser um expert para constatar a naturalização da violência contra jovens, pobres e negros – um combo sinistro. A civilizada Curitiba e seu entorno não foge à sanha nacional. A média de 15 homicídios por semana contempla sobremaneira esses grupos. Por baixo, seriam 40 jovens por mês, quase 500 por ano. Multiplique-se por uma década e se tem o dado digno de uma guerra no Oriente Médio. Parece mentira, mas não é. Como qualquer um, também custei a entender a passividade com que convivemos com o aniquilamento do nosso futuro, a cada gurizão morto. A senha para abrir essa caixa preta veio em 2007, quando uma bala perdida atingiu o menino Elvis Iriguti, 12 anos, pondo em luto a Vila Parolin. Relembro.

As pessoas podem impedir que uma praça seja mutilada, mas não se sentem capazes de salvar as crianças do Parolin ou da Vila das Torres

Não sem certa ingenuidade, acreditei que esse episódio tiraria os curitibanos da casca. Seria um salvo-conduto. Uma oportunidade para a gente se retratar. Havia ali elementos folhetinescos, um apelo à emoção bruta. Uma vez manifesta a indignação, a morte do garoto poderia ser um marco, ao chamar atenção para a vulnerabilidade de crianças que vivem perto demais de bocas de fumo, traficantes armados até os dentes e de policiais da banda podre. Havia a estranheza de Elvis ser descendente de japoneses – uma etnia pouco associada às áreas de ocupação. E de ter sido morto no Dia das Mães, quando ia a uma farmácia comprar remédio para o pai. Por fim, havia o trocadilho com o nome Elvis, uma associação com o imortal Elvis Presley.

Mas que nada – naqueles dias, os protestos na cidade eram contra a divisão em dois da Pracinha do Batel, um dos espaços afetivos da capital. Lembro da indignação de colegas de ofício, que viram nessa inversão de valores uma prova da lendária “maldade curitibana”. Quase nenhuma mensagem a favor de Elvis do Parolin caiu no e-mail do jornal. Proliferaram flores amargas para defender a pracinha. Casuísmos semelhantes se repetiram em outras ocasiões, estabelecendo uma espécie de “síndrome de frigidaire”. Seria um privilégio nosso?

Todo e qualquer jornalista que tenha feito apuração de violência e segurança pública já se sentiu incomodado com o aparente pouco caso dos leitores e autoridades – das eclesiásticas às eleitas. Essa sensação se acirra quando, por infortúnio, a vítima é alguém da classe média ou alta. Nesses casos, abre-se o Mar Vermelho e o Sésamo de uma vez só, tamanha a grita. O mesmo não aconteceu diante da chacina do Yacaraí – um apêndice da Vila Audi-União, em 2009; quando da morte de duas crianças, em uma semana, na Vila Torres, em novembro de 2014. Ou, ainda, na chacina do Osternack, no Sítio Cercado, também em 2014 e, idem, com morte de dois adolescentes. O sangue dos pequenos convive com bocas caladas. Não se trata de panfletarismo – essas palavras são, dizem por aí, a vida como ela é.

O pessoal do Parolin veio à baila esses dias – dizendo como se sente: pobre, negro e na mira

A tentação de acusar a população de insensível se mostra instantânea – não fosse essa uma premissa falsa. A todos os que a repetem, costumo recomendar a leitura do pequeno ensaio Diante da dor dos outros, da norte-americana Susan Sontag. Com a morte próxima e anunciada, em decorrência de um câncer, a intelectual se desculpa por ter, em escritos anteriores, acusado as pessoas de não darem a mínima para o sofrimento alheio. Para se reposicionar, recorre a artistas como o espanhol Francisco Goya – que no início do século 19 desceu da sua glória para se ajoelhar diante das mortes provocadas pelas Invasões Napoleônicas. Solidarizar-se é da natureza humana – resta entender o que quer dizer o silêncio.

Como Sontag, prefiro acreditar que, claro, existem os que “não estão nem aí para a Hora do Brasil”, como se dizia. Há quem tenha má fé, ou ignorância galopante, e prefira o conforto das explicações simplistas para justificar a pobreza e a criminalidade – uma esquizofrenia social tão bem explicada pela filósofa Hannah Arendt, cuja obra é de uma atualidade pornográfica. Mas não é regra. Impossível que 100% não deem bola. As pessoas agem movidas pelo princípio aristotélico do ato e potência. Podem impedir que uma praça seja mutilada, mas não se sentem capazes de salvar as crianças do Parolin ou da Vila das Torres, dois endereços abandonados há seis décadas.

Num misto de impotência e coerência – afinal, não sabem o que fazer e a própria sociedade não lhes dá pistas –, calam-se. Essa postura de quem parece estar numa camisa de força, ou que tomou doses a mais de Lexotan, se acentua quando não encontra exemplos em quem deveria dá-lo, a exemplo do silêncio imoral que rondou o caso Ágatha Vitória Félix, 8 anos, no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, há duas semanas. Para bem, o pessoal do Parolin veio à baila esses dias – dizendo como se sente: pobre, negro e na mira. Há dois anos, as mães dos jovens mortos da Vila Torres fizeram o mesmo – estamparam camisetas, fizeram barulho na Assembleia Legislativa, fundaram o “Mulheres Guerreiras”. Dá para unir nossa voz à voz deles. A isso se chama poder.

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