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Essas mal traçadas linhas
| Foto: Felipe Lima

Não sei quantas músicas que falem de “cartas” você, caro leitor, guarda na memória. Sei que não são inúmeras. Sei também que não são poucas – à revelia do fato de que os missivistas à moda antiga, não os raivosos e manipuladores do Whats, estão se tornando uma espécie de Leite de Rosas: é raro encontrá-los.

De minha pobre playlist fazem parte: 1. Mensagem, de Cícero Nunes e Aldo Cabral, sucesso de meados da década de 1940 na voz de Isaurinha Garcia, regravada não faz muito tempo por Ná Ozzetti. Já foi tema de uma propaganda dos Correios, e avacalhada numa daquelas paródias tão infames quanto hilárias de Os Trapalhões. Em vez de “quando o carteiro chegou, e o meu nome gritou, com uma carta na mão”, Renato Aragão, na pele de Didi, cantava: “e meu nome gritou com as CALÇAS na mão”. Surreal.

Falando em graça – Marília Pêra, no antológico Elas por ela, musical do fim da década de 1980, no qual interpretava divas da MPB, fazia a festa na pele de Isaurinha. Surgia no palco de costas, vestido rodado, com um envelope gigantesco nas mãos. Dramática, virava-se e parodiava a cantora paulista dizendo uma das frases nonsense de seu repertório: “Eu amo amarrrrr”... Depois se acabava na narrativa triste protagonizada por um carteiro e uma mulher desiludida – que acaba por rasgar e queimar a carta recebida antes de lê-la. Recomendo cantar Mensagem sozinho em casa e chorar o que for de direito. Economiza algumas horas de divã.

Já vai para mais de 15 anos a morte anunciada das cartas

Na sequência, 2. Eu te amo, te amo, te amo, de Roberto Carlos, lançada em 1968. Logo de cara, informa: “Cartas já não adiantam mais, quero ouvir a tua voz. Vou telefonar dizendo que estou quase morrendo de saudade de você”. É mais um elogio ao Graham Bell do que aos Correios e Telégrafos. E merece lugar cativo na lista de canções bipolares do Rei – começam pianinho (“quanto tempo longe de você...”). Dá para ouvir os passarinhos da manhã. E culminam na antessala da sofrência, uma Catarata do Iguaçu inteira despencando na nossa cabeça. A voz vai lá em cima, coração disparado, num surto sentimental: “Mas o dia que eu puder te encontrar, eu quero contar o quanto sofri por todo esse tempo que eu quis te falar”.

Permitam a heresia, prefiro Eu te amo, te amo, te amo na voz de ressaca de outro Roberto, a Roberta Miranda. Entrou na trilha sonora de Rei do Gado e era música-tema da atormentada Léia, vivida pela linda Sílvia Pfeiffer, às voltas com uma paixão bandida. Uma Emma Bovary platinada da rica Ribeirão Preto, no interior paulista, onde a trama se passava. Na voz de Roberta, a canção encontra o seu lugar de música de zona. Seu cenário são lugares como o Gato Preto e congêneres nos quais, diga-se, ainda deve circular gente que saiba da dor e da delícia de receber cartas. Recomento igualmente, em caso de precisar lamber feridas. Mas não se esqueça: “Se dirigir, não beba”.

Nem tudo é fossa, evidente. 3. A engenhosa Último post, de Zeca Baleiro e Lúcia Santos, traz uma versão “dias de hoje” para as missivas: “Escrevo cartas pro mesmo endereço. Chamo teu santo nome em vão num verso. Amo, reclamo, protesto. Não me calo, grito alto. Tropeço na tua frente”. Culmina com a poesia de “... e eu me peço calma. Quero acalmar meu corpo dentro da tua alma”. Ah, Zeca divide a gravação com Margareth Menezes. E as tais cartas da canção podem ser mensagens eletrônicas, afinal a música se chama Último post. Mas nada apaga a imagem que cria, de um doidivanas caindo de amor, acabando-se em cima de translúcidos papeis, tascando cuspe no envelope. Sorry, rapaziada, quem não escreveu uma carta não viveu. Digo sem saudosismo, como se fosse possível.

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Já vai para mais de 15 anos a morte anunciada das cartas, assim como dos telegramas, da máquina de escrever, dos jornais impressos, do orelhão e dos táxis. A reforma da Previdência chegou cedo para os envolvidos com esses meios, só que não. Esses e outros condenados permanecem beneficiados pelo “efeito vinil”. Vira e mexe e um coro de meninos entoa a plenos pulmões um resurexit sicut dixit alleluia”. Nada será como antes, a gente sabe, a cada vez que aciona um aplicativo. O mundo mudou. Mas o poder da teimosia é uma carne de pescoço. Não desdenhem.

Esta semana mesmo um amigo me contou que seu filho adolescente cultiva máquinas de escrever. Encontrar uma oficina para recauchutá-las é uma maratona – mais fácil achar quem faça uma gambiarra num Simca Chambord do que numa Remington. Disse a ele que não se assustasse com os exotismos do garoto, pois o ator Tom Hanks é um notável apaixonado por máquinas de datilografar. Não só as admira como coleciona, depois de submetê-las a cuidadosos restauros. Não só as conserva como as usa, encantado com a melodia que brota das teclas, crente, presumo, de que ao ouvi-las encontra o tom certo para suas interpretações. No mais, Hanks acredita que datilografar é uma maneira de conter a tirania do tempo veloz.

Quanto aos telegramas, mordam-se futuristas de nariz empinado. É verdade que país superpopuloso como a Índia deu um bico nesse meio de comunicação, mas não foi seguido pela maioria. O envio se modernizou e, no Brasil, a turma que curte um telegrama envia algo próximo de 20 milhões de mensagens a cada ano. Sobre os jornais impressos, melhor não falar, para não chorar. No que diz respeito aos orelhões, quem não lembra deles a cada arranca-rabo com as empresas de telefonia? A minha me deve R$ 200 – e eu que peça ajuda ao papa Francisco se os quiser de volta.

Esquecidas, apagadas e impraticáveis, as missivas, de próprio punho, parecem resistir apenas em catacumbas

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Melhor tratar de cartas. São o melhor advogado para defender práticas que não podem ser esquecidas, sob risco de irmos parar no sanatório. Antes de pirar de tanto enviar mensagem digital, entregue-se, amigo-amiga, a cada sequência do filme Nunca te vi, sempre te amei, dirigido por David Jones e estrelado por Anne Bancroft e Anthony Hopkins. Ela vive uma escritora e leitora, de Nova York. Ele, um livreiro, de Londres. Ao contrário do que diz o título, viam-se, sim, a cada “espero que esta carta o encontre bem...” As melhores histórias começam com essa frase, e não com “era uma vez...”.

Guardo um texto do intelectual português João Pereira Coutinho, “O legado de nossa passagem”, publicado na Folha de S.Paulo em 28 de abril de 2009. Trata do que ele chama de ausência de cartas em nossas vidas, “cada vez mais rápidas, cada vez mais áridas”. É inspirador. Permitam-me citar um trecho longo:

“As cartas tinham outro tempo. Corrijo. As cartas tinham outros tempos. O tempo de pensar. O tempo de escrever. O tempo de lacrar, enviar. Esperar. Era uma forma de respeito. Mesmo que fosse uma forma de despeito. Mas as cartas eram formas únicas de comunicar ao outro a importância do outro. Como se cada carta fosse, por si só, uma declaração de humanidade. Parei para te escrever. Parei para te enviar esta carta. E estarei à espera que me escrevas de volta, quando pensares em mim e parares por mim.”

As melhores histórias começam com “espero que esta carta o encontre bem...” , e não com “era uma vez...”

A cada releitura desse texto, atualiza-se o disco rígido (risos). Esquecidas, apagadas e impraticáveis, as missivas, de próprio punho, parecem resistir apenas em catacumbas. São inúmeras as produções culturais – e de pesquisa – que partem do universo das cartas. Exemplos? A escritora gaúcha Letícia Wierzchowski, de A casa das sete mulheres, escreveu o tocante Cartas de Terebin, sobre seu avô polonês, Jan, a partir de cartas que encontrou nos guardados da família.

Queria ver você feliz, da roteirista e cronista Adriana Falcão, é um romance de não ficção construído a partir de cartas que os pais da autora, Caio e Maria Augusta – dois personagens trágicos da vida como ela é – trocaram em tempos de paixão juvenil. As mensagens, de paladar e perfume intensos, impedem que o casal seja reduzido a uma bula psiquiátrica, a um velório envolto no silêncio. Adriana os salva do próprio destino ao mostrar a beleza que cultivavam em miúdas mensagens amorosas. Cartas são livros, não raro o melhor que poderemos escrever.

Em tempo. Para quem tem alguma dose de interesse pelo assunto, recomendo duas coletâneas – Cartas extraordinárias – a correspondência inesquecível de pessoas notáveis, organizada por Shaun Usher; e Cartas brasileiras – correspondências históricas, políticas, célebres, hilárias e inesquecíveis que marcaram o país, organizada por Sérgio Rodrigues. Verdade seja dita, o projeto de Shaun Usher começou na internet, com a publicação em rede de mensagens espetaculares. Tem cartas de amor. Tem Mick Jagger se correspondendo com Andy Warhol. Elizabeth II da Inglaterra enviando receita de panquecas para o presidente Eisenhower. Na versão brasileira, delícias como a carta que uma garotinha manda a Juscelino Kubitschek, com pedido de ajuda para um trabalho escolar. É música para os ouvidos.

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