José Carlos Fernandes

Guerra do Pente, 60 anos ainda hoje

José Carlos Fernandes
19/01/2020 19:00
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Dizem que numa redação de jornal tudo pode
acontecer. Ou que ali se pode saber de tudo o que está acontecendo, para ser
mais preciso. Refiro-me a fatos espetaculares, esquemas de propina, escândalos
federais, mas também a episódios prosaicos, da esfera dos faits divers ou dos hiperlocalismos, dois jargões de imprensa que
dispensam explicações.
Costumo contar que o fato mais hiperlocal que cobri como
repórter foi o caso de relação homoafetiva – ou pelo menos assim entendeu minha
fonte – entre um pato e um cachorro que dividiam o mesmo quintal no tradicional
bairro italiano do Umbará, nos subúrbios de Curitiba. Não, não houve polêmica à
época da revelação, que passou despercebida na finada coluna Entrelinhas da Gazeta do Povo.
Quanto aos faits
divers
caídos no meu colo, a lista é infinita, mas hoje merece destaque um
fato corriqueiro, ocorrido em 2000 e cacarecos.
Minha colega de ofício Marleth Silva se correspondia com um leitor veterano, de Porto União, na divisa do Paraná com Santa Catarina. Marleth era pródiga em travar relações com aquela parcela da freguesia que costuma ser menosprezada pelos jornalistas. Temem perder tempo com gente comum, cuja moeda de troca é o cotidiano.
O colecionismo é um fenômeno dos mais interessantes para compreender o público de impressos no Brasil
Exemplo da sua galeria de fontes pouco disputadas era
o seu Arno, espécie de auditor das palavras cruzadas repetidas. O erro
acontecia com tamanha frequência que seu Arno batia palmas na porta da redação,
com cara de poucos amigos. Estupefato, colocava todas as edições de cruzadas
repetidas, uma ao lado da outra, para nos perguntar como é que a gente não
percebia serem iguais. Pois é. Depois tomava um cafezinho, ele se ia mais calmo.
Não raro trazia uma barra de chocolate como presente para sua paciente ouvinte.
Graças a seu Arno, passamos a prestar atenção nos hábitos dos leitores que
envelheciam... Quanto ao mistério das palavras cruzadas idênticas, nunca foi
solucionado.
De volta ao veterano leitor de Porto União, eu
sempre o imaginei de terno cinza de tergal e cabelo rente à nuca, perfumado
como Acqua Velva. Tinha uma tática curiosa: mandava para Marleth edições da sua
coleção antiga de revistas O Cruzeiro – sim, aquela que foi a mais
importante magazine brasileira, com pico de 700 mil exemplares semanais, na
década de 1950/1960. Isso num país cujos índices de analfabetismo e alfabetismo
funcional correspondiam a metade da população.
As revistas não eram propriamente um agrado. O
leitor – de cujo nome miseravelmente não lembro – marcava com caneta Bic as
reportagens de O Cruzeiro que poderiam ser publicadas em 2012 ou 2014, mesmo sendo
de 1948 ou 1954. Era como se dissesse: “Estão vendo, o país não saiu do lugar
desde aquela época. Tudo se repete, como um disco riscado”.
Via de regra, minha amiga me mostrava as cartas e as revistas. Achava tão boa a história que planejei ir a Porto União entrevistar o leitor que, em segredo, chamava de “o profeta do eterno retorno”. Um Nietzsche das terras do Contestado. Parecia um personagem perfeito, em especial por colecionar revistas. O colecionismo é um fenômeno dos mais interessantes para compreender o público de impressos no Brasil. Está relacionado com as distâncias que milhões de brasileiros tinham de bibliotecas e livrarias. Precisavam estocar material de leitura, em especial para abastecer os pequenos nas pesquisas escolares. Sem dizer que essa biblioteca caseira, formada por produtos talhados para serem descartáveis, amenizava a má impressão de uma casa sem livros, a maior das misérias. Ainda hoje, as pesquisas do Índice de Alfabetismo Funcional indicam que as classes populares reservam um lugar nobre da casa para o pouco material de leitura que têm. Colocam livros e revistas ao lado do televisor. Mostram-nos às visitas, como prova de que ingressaram no processo civilizador.
Desconheço a condição social do leitor de Porto
União, mas se pode afirmar, de qualquer modo, que estava conectado ao colecionismo.
E foi essa a minha sorte. Marleth Silva sabia que eu lecionava Produção
Editorial na UFPR e me presenteava com as Cruzeiros
antigas, que eu mostrava aos meus alunos, como se lhes expusesse um diamante
achado por João Coragem. Numa dessas revistas, encontrei uma reportagem assinada
por Ivar Feijó, correspondente do conglomerado Diários Associados em Curitiba,
e fotografada pelo grande paranaense Sérgio Matulevicius, sobre a Guerra do
Pente. O episódio, é sabido, concorre no imaginário local com a neve de 1975,
com os milagres de Maria Bueno e as aparições da Loira Fantasma.
A Guerra do Pente aconteceu em 8 de dezembro de
1959, Dia da Imaculada Conceição. Foi, portando, há 60 anos comemorados faz
pouco. Jurava que a imprensa ia deitar e rolar com o “fato curioso” mais maluco
das araucárias. A Guerra do Pente virou curta-metragem do cineasta Nivaldo
Lopes, texto de Valêncio Xavier, pesquisa acadêmica do psicólogo Jamil Zugheib,
com repercussão internacional, sendo apresentada na Universidade do Líbano. Mais.
A Guerra do Pente era um episódio da biografia do advogado Dálio Zippin, que
por causa do fato abandonou a carreira da Polícia Militar para se dedicar aos diretos
humanos. Motivo: foi fotografado ajudando um manifestante, quando, na reprimenda
que sofreu de seus superiores, deveria ter lhe descido o cassetete.
A Guerra do Pente saiu em reportagem de O Cruzeiro, o que por si só atesta sua importância; e sob as lentes de Matulevicius, um dos gigantes do fotojornalismo à época. A reportagem não veio grifada pelo leitor desiludido de Porto União, o que me fez supor que ele não imaginava que a repetição pudesse chegar a tanto. Pois é. O ano de 2019 mostrou que a Guerra do Pente está aí, sempre em vias de se repetir.
Há um bordado de lendas em torno da Guerra do Pente. Todas deliciosas. Algumas quase verdade
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Em 1959, o Brasil vivia a ressaca financeira dos 50
anos em 5 protagonizados por Juscelino Kubitschek, o JK. O presidente bossa
nova nos deu Brasília, o avanço na indústria automobilística, a modernidade,
mas no fim da história estava o ressentimento e o conservadorismo, pondo tudo a
perder. O país era uma bomba-relógio, tensão agravada pelo desemprego e pela perda
de poder de consumo. Estávamos na antessala do golpe militar de 1964. A culpa
das coisas não andarem bem era dos comunistas. E dos estrangeiros. Nesse
quesito, a Praça Tiradentes, no Centro de Curitiba, era por certo um dos
melhores laboratórios de xenofobia do país. O local, que tinha pontos
apelidados de “Turquia”, funcionava como ponto de comércio de árabes e de
judeus. Foi um popular que gritou, numa noite quente de beberagem na praça, a
frase que deu origem ao motim: “Os turcos querem roubar o Brasil...” Virou o
estopim da bomba.
Como todo episódio contado e recontado à exaustão, há um bordado de lendas em torno da Guerra do Pente. Todas deliciosas. Algumas quase verdade. O que teria levado o popular – provavelmente com umas cachaças na moringa – a dar o grito de guerra foi um bate-boca entre um comerciante da família Najar – tradicional na região – e um subcomandante da PM, Antônio Haroldo Tavares, que pediu nota fiscal na compra de um pente de 15 cruzeiros, desses de cabelo e que os homens carregavam no bolso da camisa, à Zé Bonitinho. Ouviu um “não” como resposta, por se tratar apenas de um pente, cujo valor não o incluía na campanha de notas “Seu Tostão Vale um Milhão”, popular então. Para Zugheib, a recusa funcionou como uma gota d’água. Do nada se formou a tempestade. Depois de falar um palavrão bem cabeludo, o que é um acinte sem perdão para um árabe, o PM teria sido carregado pelo cangote para fora do estabelecimento. O grito ecoou e começou o sanatório geral. Saldo de dois mortos e 30 milhões de cruzeiros em vidraças quebradas e saques.
O ano de 2019 mostrou que a Guerra do Pente está aí, sempre em vias de se repetir
As narrativas em torno da Guerra do Pente não
concorrem em escala, mas em diversão com a Revolução dos Cravos. Ambas foram
uma sucessão de comédia de erros. Iniciou-se um quebra-quebra tão violento na Praça
Tiradentes que o Exército, ao saber que a Polícia Militar não dava conta de
conter a massa, mandou um tanque de guerra ao marco zero da capital. O tanque
encalhou e acabou virado e saqueado pelos manifestantes – todos munidos de
pedaços de pau, ferro ou qualquer traquitana à disposição.
A repressão policial se agravou quando os gritos
chegaram à Rua Jaime Reis, na residência do bem-sucedido Miguel Caluff, dono da
Casa Louvre, no momento em que o comerciante oferecia um jantar em comemoração à
ordenação sacerdotal de seu filho, Emir Caluff, cuja popularidade naquele tempo
colocaria no chinelo os padres Reginaldo Manzotti e Marcelo Rossi.
Uma das passagens mais hilárias sobre a balbúrdia da
Guerra do Pente diz que lá pelas tantas da quebradeira caiu uma chuva fina. E
chuva em Curitiba é sinônimo de frio. Todo mundo se mandou para casa e voltou
no dia seguinte, para continuar a Guerra do Pente. Na segunda rodada, deu tempo
de os populares capturarem o árabe dono da Casa Três Coelhos e o carregarem
pelas ruas, como um troféu. Tinham encontrado no “turco”, como se dizia, o
culpado pela recessão, inflação, desemprego. Simples [e idiota] assim. Às
vezes, acho que o leitor de Porto União enxergava longe. Tenho a tentação de
dizer, em coro com ele, que tudo está no lugar em que sempre esteve. Que pena.