Opinião

José Carlos Fernandes

Helen Anne e o poeta que calculava

José Carlos Fernandes
23/12/2021 07:38
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O escritor português Sidónio Muralha (1920-1982) fez 100 anos. Passa muito bem, obrigado. O festejo da data redonda, comemorada em julho de 2020, foi adiado, como tudo, a rigor, por força da pandemia do coronavírus. Mas não ficou na saudade. No momento em que escrevo esse texto, cerca de 35 intelectuais – entre portugueses e brasileiros – trataram da atualidade do poeta e prosador num colóquio internacional. O encontro aconteceu no final de novembro, de forma remota, com um Atlântico no meio. Não causará espanto se os debates ajudarem a parir o que já não é sem tempo: uma biografia à altura do personagem.
Um passar de olhos pelos convidados do evento – uma lista sortida que vai da historiadora Roseli Boschilia, da UFPR, referência em imigração, ao editor lusitano João Manuel Ribeiro, da Trinta por uma Linha – dá uma amostra do interesse múltiplo que Muralha desperta. Exemplo? A jornalista e escritora maringaense Jaqueline Conte – em temporada de estudos em Portugal – pesquisa a importância da editora infanto-juvenil fundada por Sidónio, quando se mudou para o Brasil, a Giroflé. A pequenina casa publicadora teve em suas fileiras entusiastas que dispensam apresentações: Vinícius de Moraes, Cecília Meireles (que ali publicou Ou isto ou aquilo) e Caio Graco Prado, a mente inquieta por trás da mítica Editora Brasiliense. E segue o fado.
Estima-se que dentro em breve toda a obra infantil de Muralha será relançada pela editora “tuga” Trinta por uma linha. A esgotada antologia poética está em vias de ganhar edições nacionais e portuguesas – por aqui, a cargo do editor Luiz Andrioli, da editora Prosa Nova. Um Sidónio musicado para os pequenos está no radar do pesquisador José Raimundo Noras. Some-se uma exposição em negociação, no Museu do Neo-realismo, em Vila Franca de Xira. Há mares por vir. Apontado como um mestre na poesia para crianças, o autor de Bichos, bichanos e bicharocos, e outros 15 títulos para esse público, soma duas dezenas de livros em prosa adulta, incluindo romance e ensaio. Em tempo – um de seus versos, “O roteiro”, volta e meia sai da cartola dos políticos (“Parar. Parar não paro. Esquecer. Esquecer não esqueço. Se caráter custa caro, pago o preço…”). A aposta dos conhecidos é o autor revira no túmulo a cada homenagem.
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Como o mundo enfrenta ainda uma outra epidemia – a do apagamento da memória – vale lembrar que dos cravados 20 anos em que Sidónio Muralha viveu no Brasil, cinco foram passados em Curitiba. Aqui morreu, em 8 de dezembro de 1982. Tinha 62 anos e, sabe-se, havia pulado umas tantas fogueiras. Queimou-se, sem perder o humor jamais. “Sabia ser engraçado, contava charadas e fazia mágicas com copos”, resumiu sua viúva, a ginecologista e obstetra curitibana Helen Anne Butler Muralha, 90 anos, em reportagem publicada na Série Perfis, da Gazeta do Povo, em 2015. O encontro da moça bem-comportada, Helen, e o poeta exilado, Sidónio, é um romance invulgar.
Natural de Madragoa – um daqueles irresistíveis bairros lisboetas à beira do Tejo – Muralha cedo se viu às turras com a ditadura salazarista. Na mira da Pide – a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, um órgão de repressão pouco dado a delicadezas – fez o que fazem os que sentem a proximidade entre a pele e o ferro em brasa: bolou um plano felliniano para escapulir de Portugal. Em parceria com um amigo de toda a vida – Alexandre Cabral – submeteu-se a uma espécie de madureza ginasial para aprender francês em poucas horas, o suficiente para passar a conversa nas autoridades e ganhar licença para trabalhar na África, precisamente no então Congo Belga (hoje República Democrática do Congo), onde se julgavam a salvo.
Os amigos conseguiram sair do país, mas a farsa do francês fluente não tardou a bater na bunda. “Ele foi parar atrás de um balcão, no qual vendia embutidos…”, ilustra Helen. Àquela altura, Sidónio Muralha já tinha escrito peças de teatro e assinado alguns dos versos que o colocariam na galeria de autores do neo-realismo português. Mas não foram propriamente suas habilidades com a palavras que lhe garantiriam sustento. Sidónio era um “poeta que calculava”. Depois de finalmente aprender na marra a língua de Flaubert, Balzac e Proust, usou de suas habilidades como administrador e economista para chegar a altos postos numa subsidiada da UniLever. Virou executivo e escritor quase em segredo.
A festa só acaba em 1960, durante as guerras que levaram à independência do Congo. Outra vez no papel de pária, ajuda muitos estrangeiros e nativos malvistos a fugirem das agruras da guerra civil, inclusive estende a mão a missionárias belgas. É um dos muitos episódios hilários de sua futura biografia. Já no Brasil, descobriu que freiras uma congregação a quem dava consultoria econômica, em Minas Gerais, rezavam todas as manhãs, nas laudes, por um bom português, de identidade desconhecida, que tinha ajudado irmãs a fugirem do Congo. Dá para imaginar a cena miraculosa ao descobrirem que o tal benfeitor estava ali, devorando cestinhas de pães de queijo enquanto as ajudava a sanear a contabilidade do convento.
A mudança para o Brasil – depois de maus bofes com o clima gélido da Bélgica – foi uma espécie de aventura tropical. Instalado em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, com a família de quatro filhos, dá corda ao sonho de viver de poesia. Funda a Editora Giroflé – conhecida pelos inovadores livros finos e compridos, e pela participação das crianças na produção de imagens, num tempo em que interatividade não tinha o sentido de hoje em dia. Ganhou aplausos. Contou entre seus declamadores Nathalia Timberg e Paulo Autran. Mas Muralha também provou do avesso da simpatia brazuca: foi boicotado pelo mercado editorial e empurrado da escada pelo golpe de 1964. Torrou tudo o que tinha para saldar dívidas da casa publicadora. A graciosa Giroflé saltou dos infernos contábeis para o território das lendas.
Por ironia, restou ao editor falido pagar as próprias contas como consultor financeiro – o que o levou a circular por todo o Brasil. Propagava um método rápido e certeiro de ajustes nos balanços, verdadeiro personagem de Malba Tahan. Conta-se que nas reuniões corporativas fazia sonetos. Pedia aos presentes que lhe dessem 14 palavras. Palavras quaisquer. Todas entravam na composição. Aqui prestou serviços para a Fundição Müller e Matte Leão, entre outras, plantando poetas e auditores. Numa dessas viagens de assessoria conheceu a médica Helen Anne Muralha, dentro de um ônibus da Viação Penha, entre São Paulo e Curitiba. Tornaram-se grandes amigos, depois namorados e, quiseram os deuses, um casal. O enlace durou cinco anos, até a morte precoce de Muralha. Depois do silêncio para digerir a perda, Helen transformou a casa dos pais dela – um imóvel eclético, misto de alvenaria e arquitetura de madeira, com lambrequins generosos e sótãos –, na Fundação Sidónio Muralha. Fica na Rua Westphalen, 1014.
À revelia da tortura imposta os espaços culturais, mantém-se aberto até hoje. Foi sentada num banquinho do quintal da fundação, em 2019, numa conversa com a arte-educadora e parceira contumaz, Priscila Angélica Santos, que surgiu a ideia de fazer barulho no centenário. Fizeram.
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“Conta a dos sapatos…”, provoca a historiadora Jasmine Saraiva, colaboradora de Helen na fundação, sobre uma das muitas passagens em torno do poeta portuga que “bagunçou” os planos da ginecologista e obstetra, musicista espartana e profissional de saúde que mais realizou partos em Curitiba. Foram 60 anos ininterruptos nesse ofício que pode consumir de 12 a 24 horas de um médico. Houvesse a associação dos paridos por Helen, ultrapassariam 14 mil sócios.
Quanto aos sapatos: “Eu ia sair de casa para trabalhar e não achava um dos pares dos meus calçados. Quando olhava para o alto, estava pendurado num lustre”, diverte-se. Sidónio adorava esse humor nonsense, à moda de outra poeta ilustre, a polonesa Wislawa Szymborska.
As gargalhadas de Helen são gostosas.
Certa feita, lembra, Muralha saiu de um restaurante levando nas mãos uma cadeira de vime e ferro, sem que ninguém notasse. Nos jantares, aos quais o casal era dado, e dedicava à companheira versos curtos, haicais escritos nos palitinhos das caipirinhas. Sim, ela os guarda até hoje, na casa-museu que – qual uma obra do turco Orhan Pamuk, é um espaço dedicado a esse amor outonal, ligeiro e eterno que, em alguma medida, Portugal e Brasil também redescobrem.