José Carlos Fernandes

“Instantes mágicos” na pandemia

José Carlos Fernandes
04/10/2020 19:00
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Dentre os poucos lugares a que a pandemia nos permite ir, um deles – ao menos para mim – é a molduraria. Percebo que não estou sozinho nessa estranheza. Não raro, fico naporta, à espera de que o freguês que está no balcão se decida por um modelo Luís XV, com muito dourado e paspatour, ou pelo despojamento de um “tipo” rústico; ou se entregue ao arco-íris, mandando às favas o bom comportamento dos tons pastéis e ponha um Bee Gees na vitrola.
As proprietárias – que não reclamam da falta de
serviço – reconhecem que as longas horas entre quatro paredes têm levado muita
gente a retirar das gavetas retratos, gravuras, bordados, postais de viagem e
reproduções de santos. Muitos santos. Um dia, quando o coronavírus for passado
– e para isso torcemos –, talvez os decoradores se debrucem sobre o fenômeno da
entronização das imagens sacras ao longo de 2020. As próprias moldureiras me
contaram, animadas, do Santo Antônio, trazido pelos parentes da Polônia, talvez
há um século, agora recauchutado e recolocado no centro da sala. Tem merecido mais
mimos que um sobrinho. Como faço parte dos devotos do Toninho – e não me
perguntem por que, pois a graça é justamente não saber –, a prosa rende. Nada
como conversa fiada para descansar das agruras do noticiário.
Não é preciso ser um expert em sociologia e antropologia para imaginar as razões desses afetos religiosos em meio aos índices de mortes que não param de subir. Os santos e santas são a marca vermelha do cordeiro nas nossas casas, para que o Deus vingador saiba que ali moram pessoas tementes a Ele. Negociação com a divindade, simples assim. Sem dizer que a hagiografia é das poucas delícias desse mundo. Nem a Glória Perez criaria narrativas tão espetaculares – em especial no que diz respeito aos mártires da Igreja Primitiva: Santa Cecília, Águeda, Cosme e Damião e o debochado São Lourenço – o que virou churrasco.
Um dia, quando o coronavírus for passado, talvez os decoradores se debrucem sobre o fenômeno da entronização das imagens sacras ao longo de 2020
Desafio mesmo é interpretar o estranho
rejuvenescimento da iconografia católica. A maior parte dos santos e santas
fundadoras de ordens e congregações religiosas ganhou uma camada de botox.
Reparem. Um dos que mais me impressionam é são Marcelino Champagnat, fundador
dos irmãos maristas. Lembro da figura contrita, magérrima, arqueada – marcas da
penitência e do cansaço físico provocado pelo cuidado com as crianças
necessitadas. Hoje, Marcelino é um “pão”, como se dizia – rosado, bem penteado
e sorridente, por certo mais atraente aos jovens que praticam fitness e
valorizam a felicidade como medida de todas as coisas. Ou pelo menos é o que
dizem aos gerentes de RH, que negam emprego aos que se confessam calados,
pensativos e depressivos vez ou outra.
Champagnat é só um exemplo. Suspeito que o milagre
do rejuvenescimento atinja o grosso da iconografia. E que não se trata apenas
de tornar os santos mais atraentes para as novas gerações – ou mesmo de
livrá-los da fleuma romântica, que os retratava como sofredores, quando eram por
certo felizardos por suas escolhas e deviam soltar algumas gargalhadas, entre
uma troca e outra de cilício. Penso que uma certa infantilização tóxica ronda a
imagem dos santos, da Virgem e de Jesus Cristo. Só falta Deus, que permanece um
senhorzinho barbudo, de humor no limite e que se levanta tarde.
Nossa Senhora Aparecida – uma de minhas devoções – virou um brinquedinho com olhar de July Pop e a quem, certamente, faremos pedidos tolos e sem senso de realidade. Bibelô assim não comporta o hinário robusto dedicado à Aparecida, belo, adulto, feito para os corais que enchem uma catedral, mas para canções tatibitates compostas pelo padre Marcelo Rossi. A propósito, a pior versão da Aparecidinha é a branca, coberta de pérolas, flagrante desconsideração à construção social da Padroeira do Brasil como uma mulher negra.
Claro, as múltiplas representações dos santos não são
assunto que se trate assim, de enfiada. Sofreu sofisticações e simplificações a
cada crise iconoclasta, provocadora de cismas aqui e ali, séculos a perder de
vista. A tentação é acusar o pentecostalismo de responsável pelo dilúvio de
baboseiras que incentiva a prática ingênua da fé. O investimento carismático no
“Cristo Garçom”, que corre para nos atender em necessidades burguesas, fez
estragos. Mas talvez não seja muito diferente das imagens barrocas, teatrais,
emocionais, criadas por deuses-artistas da Contrarreforma. A vantagem era que o
Êxtase de Santa Teresa (século 17)
foi assinado por Bernini e eu não sei o que fazer com a reprodução de um
Coração de Maria, à Romero Brito, que minha mãe insiste em manter na parede.
Minha rebeldia é que não lhe trocarei a moldura.
***
Dia desses, a dona da molduraria fez um comentário
que vale uma tese. Diante de uma pilha de retratos antigos, em preto-e-branco,
que levei para fazer quadros, disse que “as pessoas antigamente não sorriam
para as fotos”. Falou com conhecimento de causa, em nome das muitas fotografias
de família que têm lhe chegado todos os dias.
A observação rendeu algumas hipóteses, quem sabe furadas, sobre um provável “efeito retardado” das fotos com chapas de vidro, que exigiam do retratado que não se mexesse, sob pena de gerar efeito fantasma. Ou com a destreza exigida pelas máquinas Rolleyflex, que por certo impunham alguma autoridade do fotógrafo sobre a postura do fotografado. A seriedade talvez tivesse a ver com o preço de tirar e revelar uma fotografia – popularizada apenas nos anos 1970, com o advento das vulgares Kodak e suas cópias sofríveis. Caprichava-se, para não perder dinheiro. Não descartamos outra possibilidade – a de que a aparente seriedade dos nossos pais e avós reproduzia a cara dos astros e estrelas de Hollywood, que posavam para fotos no papel de deuses. Por fim, as fotos de outrora não eram selfies, que nem fotos são, mas “imagens” que criamos para ganhar curtidas. Não sou eu quem diz, mas o Sebastião Salgado.
Abrir um álbum de família equivale a cair no buraco de Alice. O que parecia registro dos tempos em que se morria de apendicite ganha aura de enigma a ser decifrado
O fato evidente é que a pandemia mexeu com nossa
maneira de olhar as coisas simples da vida. Qualquer cena de Malhação, com pessoas numa lanchonete,
rindo e se tocando, parece uma lembrança das existências passadas. Nesse
contexto, abrir um álbum de família equivale a cair no buraco de Alice. O que
parecia registro dos tempos em que se morria de apendicite ganha aura de enigma
a ser decifrado. A Covid-19 mexeu com nosso olhar.
De minha parte, o exercício tem sido uma festa. Fotos vistas inúmeras vezes ganharam frescor pandêmico, que ironia, e – como relatado – não raro são reproduzidas, ampliadas e aterrissam na molduraria. Sim, ampliadas. Parte da coleção de imagens aqui em casa é formada por copiões – aquela versão pequenininha, para a gente decidir se ia ou não “mandar fazer”. Pois quase nunca mandava. Um desses tesouros em miniatura mostra minhas irmãs na Rua João Stenzowski, na Vila Cubas, Novo Mundo, quase esquina com a Avenida Brasília, talvez em 1964. Pela maestria, tenho todas as razões para desconfiar de que foi feita por Francisco Gortz, o Chicão, russo alemão menonita, que trabalhava na Gazeta do Povo à época e a quem meu pai conduzia, como motorista do jornal. Não canso de olhá-la. Nunca a expressão “momento decisivo”, “instante mágico”, atribuída a Cartier-Bresson (1908-2004), pareceu fazer tanto sentido.