José Carlos Fernandes

Iyagunã, mulher negra, a grande mãe

José Carlos Fernandes
08/03/2020 19:00
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Quando menina, no Norte do Paraná, Dalzira Maria
Aparecida, mineira de Guaxupé, vivia debaixo do olhar severo do pai, seu José
Persiliano dos Santos, um devoto Congregado Mariano. Para júbilo da família de
meeiros negros e empobrecidos, a guria era Filha de Maria, uma irmandade laica da
Igreja Católica, prestígio da era pré-Vaticano II. Dalzira dava passos largos
na hierarquia, distinção comprovada nas cores das fitas e medalhas que
carregava – das verdes às azuis –, curvando seu pescoço a cada nova consagração.
Caso ferisse o estatuto da ordem, contudo, podia vê-las confiscadas. Quando
acontecia, virava um disse-me-disse em Centenário do Sul, a cidade para onde os
Santos imigraram. Os motivos podiam ser a desonra da moça ou seu mau comportamento
– conceito no qual cabia tudo. Para tristeza de Persiliano, Dalzira gostava de
dançar. Rastapés de terreiro de roça, é verdade, mas ainda assim um perigo
explícito a seu único bem – as fitas.
Por sorte, ninguém a puniu. As fitas não foram
pilhadas, nem a guria ficou mal falada na praça da matriz. Mas a paixão pela
dança acabou por revelar, no futuro, que o lugar de Dalzira não era no severo catolicismo
no qual foi talhada. Tinha perto de 40 anos de idade quando a curiosidade – e a
necessidade – a levaram a um terreiro de candomblé, já em Curitiba. Estava nas
raias do desespero. Dada a noites de insônia, enfrentou a pior de todas as
crises – e quem já as teve sabe que é uma visita ao inferno, seguida de um
abraço no diabo. “Foram 17 dias e 17 noites”, repete, como uma personagem de
Gabriel García Márquez.
Para se curar, a insone Dalzira tomou muitos banhos receitados pelo pai de santo Paulo Roberto Michelize, um negro-ucraniano, um médico antropólogo. Desconfiou de todos os receituários. Mas se enganou redondamente. De uma cajadada só, aceitou a vidência, que vinha desde a infância; descobriu ser filha de Ogum e, o melhor, voltou a dormir. Paralelo, fez as pazes com os atabaques e os remelexos, bem melhores, aliás, que os bailinhos rurais. E se safou do preconceito contra o candomblé, que lhe dava nós na orelha. No fim de tudo, fez um buri – uma oferenda aos orixás. Nascia Iyagunã, a Iá, uma mulher mística talhada para a maternidade.
A paixão pela dança acabou por revelar, no futuro, que o lugar de Dalzira não era no severo catolicismo no qual foi talhada
Dalzira nunca se casou, mas criou sete filhos, que
foram chegando ao sabor do vento. Ganharam canelas compridas e barbas em meio
às cerimônias no Ile Aseo Juboogun (“Casa da força dos olhos de Ogum”),
terreiro que mantém “faz uma data” no Bairro Alto, na região norte da capital
paranaense. O lugar é pequeno e modesto, um fundo de quintal. Iá não chega a ter
20 filhos de santo iniciados e, de uns tempos para cá, tende cada vez mais a se
recolher no templo que ergueu ao lado de uma cozinha. É todo pintado de azul
celeste. Tem milhares de fitas brancas penduradas no forro. Quando não há gira,
a espevitada cachorra Pandora corre pelo local. Mais do que nunca, o terreiro é
o exílio de Dalzira, a mística. Ela quer transcender. “A velhice me chama”. Só
que a vida não lhe dá sossego. Está sempre a chamando para militar.
Iá é não só uma líder religiosa, cuja admiração ultrapassa as particularidades das confissões e das correntes teológicas. É uma personalidade do movimento negro. Antes de abrir mão das honras de uma Filha de Maria e se render à dança do candomblé, abraçou um sem-número de brigas para combater o racismo. É o único assunto que rouba o mel da voz e acentua seus traços – que desmentem seus 78 anos. “Eu me esforço para não ser amarga. Neste quesito, nem sempre consigo”, reconhece, ao trançar os episódios de discriminação que presenciou.
Ainda se emociona ao falar da morte de uma irmã, em complicação de uma diabete, mas tratada com vermífugos por um médico que lhe sonegou o direito a exames. “Para ele, doença de preto era fome ou lombriga”, resume. “O racismo, quando vem, coloca você num paredão. Não existe negro no Brasil que nunca tenha sofrido racismo. Ou você se descobre e se assume, ou você aniquila. Nunca aniquilei diante dessa fera.”
A autoridade moral de Iyagunã é tamanha que, neste
fim de semana, os cinco casais LGBTs que se casaram numa cerimônia coletiva,
organizada pela ONG Mães Pela Diversidade, a escolheram para ser a celebrante. Foi
unânime. “Disseram que Iá era a única que os representava”, conta a
historiadora e ativista Marise Félix, coordenadora do “Mães” no Paraná. Não foi
o primeiro casamento celebrado pela religiosa, mas com certeza o mais
cativante. “Num terreiro de candomblé ninguém é homem ou mulher. A gente não
tem essa separação – deve ser a única religião assim. Prezamos as pessoas. Os
gays não são sobrenaturais, nem têm aqui estigmas de serem diferentes. São um
irmão, um primo, alguém próximo”, exemplifica, com ciência, a maior de suas
virtudes.
***
A menina Dalzira cumpriu o destino das mulheres de
sua geração. Cedo foi apartada da escola – como dizia o pai, estudo é para os homens,
os provedores da casa. Aos 13 anos, debaixo de muita insistência, conseguiu que
seu Persiliano lhe ensinasse as primeiras letras. “Foi à luz de lamparina”,
lembra. Tempos depois, concluiu um curso de corte e costura, seu passaporte
para firmar endereço na capital paranaense. Quando chegou, perdeu a conta das
ofertas que recebeu para trabalhar como doméstica. Havia quem a parasse na
esquina e, mesmo sem conhecê-la, dissesse. “Minha filha adoraria ter uma moça
como você trabalhando na casa dela”. Recebia o convite com perplexidade: “Nem
me conheciam, mas me queriam como empregada”. Recusou e permaneceu a bordo das
tesouras, moldes, zíperes e barras de calça. Fez-se operária de malharias. A
distinção profissional foi meio caminho andado: “Em Curitiba, a gente sempre
era o outro”, alfineta.
Os empregos em firmas exigiam que Dalzira tivesse mais e mais conhecimentos. Já passada dos 30 anos, decidiu ocupar uma carteira do Colégio Estadual Tiradentes – ao lado do Passeio Público. Em pouco mais de dois anos, cursou o EJA, Educação de Jovens e Adultos. Para surpresa geral, inventou de ir mais longe. Graduou-se em Relações Internacionais na hoje Unicuritiba. Tinha 68 anos. Fez um festão. Provocada pela amiga Socorro Araújo – dona da livraria feminista Vertov –, ingressou no mestrado de Tecnologia e Trabalho da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, concluindo sua dissertação em 2013. Sem dar mole, com mais de 70 anos se classificou na seleção de doutorado em Educação na UFPR e está na fase de pesquisa para a tese. Dalzira estuda as motivações de professoras negras do ensino público – as ligadas a religiões de matriz africana e as de igrejas neopentecostais. “Senti a necessidade de tratar do tema nesse momento de ‘menino veste azul e menina veste rosa’”. Seu orientador é o professor Paulo Vinícius Baptista, referência na diversidade.
Alguma escola deveria convidar Iá para falar de Winnie Mandela para crianças e jovens
A quem Dalzira deve o que é? Ela cita os pais, como
esperado. Lamenta tudo o que a mãe não pôde desfrutar. Dona Maria de Jesus foi
lavadeira e doméstica. Pediu aos filhos que estudassem e que erguessem a cabeça.
Em certo sentido, Iyagunã vive por Maria de Jesus. Mas a “grande mãe”, seu
sentido de ialorixá, não esconde que pulou fogueiras inspirada numa outra
mulher negra, Winnie Mandela (1936-2018). Tenho para mim que alguma escola
deveria convidar Iá para falar de Winnie para crianças e jovens. Seria a
transmissão de uma herança ancestral, como se todos estivessem em volta da
fogueira. Nos mais de 20 anos em que Winnie lutou pelo fim do apartheid na África do Sul, enquanto seu
marido Nelson Mandela estava preso, Dalzira a acompanhava pelo noticiário, no
melhor do estilo tiete militante. Havia uma conexão Bairro Alto-Soweto. Outras
mulheres negras devem ter feito o mesmo, de modo que, tudo indica, o efeito
Winnie ainda não foi estudado o bastante.
Em tempo, Dalzira não esconde que o objeto de seus
desejos são os países africanos de língua portuguesa – sonha com Moçambique,
Cabo Verde e Angola, com as Guinés e São Tomé. Se pudesse, iria visitá-los
todos, mesmo estando próxima dos 80 anos. “Quero somar com eles. Mesmo sem
saber se precisam da minha soma.” Eis a Iá.