Adriano Justino

Brzezinski não habita o passado

Adriano Justino
02/06/2019 20:00
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O artista plástico paranaense João Osório Brzezinski vê com graça a popularidade dos floridos tecidos de chita. Barata, a chita se tornou item obrigatório em lojas de decoração, bares e restaurantes descolados. E, no vestuário, do laço na cabeça das mulheres às chinelas. É tendência à direita e à esquerda – formando um mínimo múltiplo comum bem no meio do tiroteio. O mesmo se diga da estopa, cuja grossura de saco de feijão se tornou sinônimo de elegância despojada e afeto pelo planeta. Some-se à lista o plástico – em azul-piscina, verde-água e rosa-bebê, ambíguos, no limite do bem e do mal, ora reciclável, ora veneno dos mares.
Pois nada faz inveja ao João. A chita, a estopa e o plástico são seus conhecidos de antes de anteontem. Muito antes de esses produtos virarem bandeira ou moda de ocasião, Brzezinski – o artista premium de sobrenome impronunciável – fez deles sua matéria-prima. E, com exceção do plástico – talvez –, assim permaneçam. No apartamento em que mora, na divisa do Cabral com o Boa Vista, não tem síndico que o segure. Forrou as portas com tecidos, nos tetos colou fibras, arrancou reboco e tingiu os tijolos de lilás, uma cor que é para os fortes. Fez o que boa parte dos criadores faz – uma casa objeto.
Uma questão,
contudo, assombra a biografia do João Osório. Em 2019, ele completa cravados 60
anos de seu ingresso na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, a Embap. Foi
seu passaporte para o futuro e, que engraçado, para os livros de História da
Arte. Causou ao chegar. Nesse tempo todo, nunca foi esquecido – e não
propriamente por suas meias estampadas ou pelo humor peculiar, que muitos camaradas
se apressam em classificar de ranzinza. Passado dos 70 anos, ele permanece o
jovem brilhante que abalou o reinado das naturezas-mortas, dos vasos de flores
e dos retratos de gente rica para colocar em cima da cristaleira. Sim – existe
o antes e o depois de JOB.
Filho de Isidoro Brzezinski, um juiz da cidade de Castro, nos Campos Gerais, João Osório virou artista “no susto”. Um dia, viu o desenho de um cavalo branco feito por um tio. Noutro, a cesta de frutas pintada pela mãe, Conceição, depois de fazer um curso de pintura com freiras. Na sequência, flagrou seu irmão criando cópias em nanquim de fotos de estrelas de cinema publicadas na revista Cruzeiro. Decidiu fazer o mesmo – mas começou por um perfil do narigudo papa Pio XII. Ninguém teve dúvida do que seria na vida – ainda que nem sempre o levassem a sério. Enfrentou os preconceitos em série destinados a um “bem nascido”. “Eu era sempre ‘aquele rapaz que pinta’. Nunca ‘um pintor de talento’”, lembra, sobre a desconfiança destinada aos que desfrutam de recursos para serem artistas. Havia quem não soubesse dizer se ele era bom, doido varrido ou se tinha como pagar pelo frisson que causava. O tempo provou que a primeira opção era a correta.
João pintava, esculpia, desenhava, colava – tudo como quem respira. Nenhuma técnica lhe era estranha, ainda que da Escola de Belas Artes para dentro tenho sido um acadêmico comportado, que cumpria às cegas as normas de composição e do cavalete. Os míopes viam nele um continuador de Andersen, ou de Viaro na melhor das hipóteses. Da porta para fora, arrepiava, como se fosse Curitiba a Londres ou a Nova York dos anos 1960. “Não tinha como lutar contra a escola”, explica. Nem contra o mundo pós-guerra, com pílula anticoncepcional, minissaia, Vietnã, viagem espacial e Brigitte Bardot, como dizia a canção. Seguiu o baile.
Em parceria com amigos de geração, como Fernando Calderari, Juarez Machado e Fernando Velloso – para citar três –, João Osório colocou a capital paranaense na órbita terrestre. O topete de subir na mesa e se pendurar no lustre teve um preço: deixou de ser bem-vindo nos Salões da Primavera, ainda que se desse às mil com toda a geração anterior. Fala de Freyesleben ou De Bona como amigos de mesa. Seus relatos sobre o trágico Miguel Bakun são, com folga, os melhores. Contudo, parece condenado ao passado, como se não houvesse nada entre o João alternativo da era da chita – que batia ponto na Galeria Cocaco – e o João establishment das marinhas – que nos anos 1990 enchiam os olhos e murchavam os bolsos dos colecionadores.
Ele jura que não se importa em ser lembrado pelo que já foi. Seu apartamento, inclusive, é um minimuseu das obras que fizeram dele um enfant terrible da arte local. Estão lá uns poucos sobreviventes da “fase cabocla” – esculturas erguidas com bacias da marca Flexa e pedaços de canos de plástico que afanou de uma obra da prefeitura, quando era piazão. Nas paredes, sequências delirantes das colagens à base de panos – e com muitas palavras bordadas em relevo. São termos minimalistas e enigmáticos, como “inteiro”. Podem remeter a uma marca de drinque – a exemplo “morrer de amor”. Serem pura provocação, como a expressão “Polaco do avesso”, numa alusão crítica a um dito racista que era repetido sem filtros para relacionar negros e eslavos. Ou remeter a chistes da comunidade polaca, da qual é filho cuspido e escarrado: “Sovaco de ruteno”. “Essa frase era dita por meu pai...” Abusado? Abusado.
A propósito, o melhor do Brzezinski está no acervo doméstico porque não vendeu nada, ou quase nada. Algumas peças produzidas nos tempos de “chose de lóqui” foram adquiridas pelos museus – o MON, no momento, mostra colagens do João. Mas teve uma pá de coisas que caducaram e viraram sucata em terreno baldio. “Prefiro não comentar”, avisa. Há uma ironia das boas nessa relação entre sucesso de crítica e fracasso de vendas.
Brzezinski ganhou fama e admiração com o que produziu “fora” da Belas. E dinheiro com o que aprendeu dentro, para tirar nota e não ser tratado aos berros por alguma eminência da época. “Decidi usar o que me ensinaram na faculdade”, brinca. Por pelo menos duas décadas suas marinhas expressionistas foram item obrigatório na pinacoteca de gente graúda. O público adora. Os amigos e entendidos fazem cara de paisagem quando falam no assunto. Mas ninguém nega a qualidade da etapa, digamos, mais comercial dessa longa carreira. “É boa pintura”, dizem, sobre o sujeito infalível. E não raro, em seguida, soltam um decreto: “Ele é bom mesmo é no desenho”.
João Osório Brzezinski se aposentou como professor de desenho de modelo na “Belas Artes” – por acaso aquele prédio hoje em ruínas na Rua Emiliano Perneta. Ocupou a cadeira que pertenceu a ninguém menos que Guido Viaro, seu professor. Ao se aposentar, por sua vez, sonhou deixá-la para o pintor Fábio Noronha, mas essa é outra conversa. Da década de 1970 aos anos 1990, um dos fetiches de quem estudava na Embap era ver o João pegar o lápis ou o carvão, botar os olhos na modelo e flagrá-lo a bordo de um papel. Quem testemunhou confirma: a lenda era pura verdade. Seu traço é vigoroso, personalíssimo.
Mas desconversa quando o assunto é sua virtuose no desenho – apenas assume que guarda muitos no ateliê. E passa a prosa adiante. Polaco, alto, de fala contida e pouco dado a censuras, João gosta de afirmar sua, digamos, multiplicidade de interesses. É um saco de jujubas. Diz, para ilustrar, que um dia sonhou entrar para a Aeronáutica. Um aviãozinho de madeira pendurado num fio de náilon, no meio de sua sala, invoca o antigo fetiche. Cedo descobriu que não saberia bater continência. O que não significou abandonar as alturas. Por um período, o João da chita, da estopa, do plástico e do desenho virtuoso era também o João da asa delta. Volta e meia sumia do mapa, para se atirar de algum morro. Um guri.
As águas também o fascinavam – chegou a construir um caiaque, quando não eram vendidos por aí, e a navegar no lago gelado do Parque São Lourenço. Nu, inclusive. Uma balbúrdia em tempos felizes. A propósito, o caiaque virou e João foi fotografado à moda de Adão. Viralizou. Riu-se muito à época. O episódio é um dos que rondam seu anedotário – todos lembrados para ilustrar que por trás de sua aparente despretensão, e do humor com pimenta malagueta, se esconde um sujeito de cultura oceânica, aventureiro, capaz de captar a vida sempre do melhor lado – o lado mais interessante. Seu lema deveria ser copiado de Neruda – “confesso que vivi”. E que bebeu. A pré-diabete o tirou do mercado, mas João tem um imbatível repertório etílico. Uma receita de batida, aliás, está escrita numa de suas telas.
É um boêmio – mas um boêmio que vai ao cinema e pratica leitura. A lente pendurada no pescoço, qual um pincenê dos tempos de Olavo Bilac, é acionada a qualquer hora. Com o dispositivo à Marshall McLuhan, capta palavras, imagens e texturas. Tem só uma vista – a outra foi perdida numa barbeiragem médica, segundo conta, em detalhes, que quase nos fazem desmaiar. Culmina a saga do olho perdido ao mostrar um autorretrato em que aparece com um olho vazado. “Foi uma profecia”, diz. Como de todo o resto. João driblou o tempo. É um sujeito no presente. Prova? Retoca qualquer trabalho seu que esteja ao alcance. Sempre acha um defeito. Tem na parede uma colagem datada de 1967 a 1992. Mexeu nela por 25 anos. O agora lhe é natural. Eis o segredo.