José Carlos Fernandes

Por favor, NÃO empurrem…

José Carlos Fernandes
30/08/2020 19:00
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A velhice emerge como um dos temas colocados em alta pela pandemia de Covid-19. Os números não mentem. Os idosos são os mais vulneráveis à letalidade do vírus. Estar perto de um deles exige perícia. Os 1.001 cuidados com aqueles que passam dos 70, 80, 90, contudo, não esgotam a conversa. O coronavírus trouxe à tona expressões como “velhofobia”. Não vale a pena repetir as barbaridades ditas até em aqui em relação a essa fatia da população. O fato é que sairemos desses dias com a impressão de que – pelo menos em parte – o tal do brasileiro cordial, que ama e respeita as cabeças brancas, é a lenda do Saci Pererê.
No senso comum, quem se mostrou menos sensível aos
velhos – vejam só – foram os jovens. Obviamente, grupos de jovens dentre os
jovens. Os bares cheios assim que pinta uma brecha; as caminhadas em grupo –
inclusive dentro do supermercado – trazem a chancela do pouco caso. Os velhos
que se danem quando todos os hormônios clamam pelo verbo “curtir”. Mas longe de
mim acreditar nisso em 100%. Trabalho com a moçada e chego a me comover com os
gestos de afeto com o mundo que demonstram – gestos catalogados como
“espiritualidade laica” pelo filósofo francês Luc Ferry, ao se referir a essa
geração. Melhor é se perguntar que diabos acontece.
O que torna os velhos invisíveis no século 21?
***
Certa vez, um aluno da universidade – hoje jornalista em plena atividade – escreveu num texto a frase “um senhor de 47 anos”. Eu, que já tinha passado dessa idade fazia alguns anos, perguntei-lhe se achava que 47 anos era velho. A resposta foi “sim, claro”. Rimos muito. Falamos sobre como acusar a idade num texto jornalístico – de preferência sem colocar “senhor” ou “senhora” na frente do nome, de modo que o leitor, ao ser informado do número de anos do entrevistado, aplique sobre esse dado seus próprios filtros. Ao rotular, manipula-se, mesmo que não seja essa a intenção.
Não causa espanto a miopia dos mais jovens em relação aos adultos
No mais, era preciso remar contra uma tendência
nefasta que vingou nas matérias de comportamento – em especial na mídia
televisiva. Nessas, os velhos aparecem ora como “seu João e dona Maria” – em
geral sorridentes, assexuados, como uma cristaleira no canto da sala –, ora
como “velhinhos power”, que correm 15
quilômetros toda manhã, dançam a tarde toda na Sociedade Água Verde, usam manga
cavada e escalam o Marumbi no fim de semana. Quem não é igual é porque não deve
ter boa vontade, entregando-se aos remédios e aos sofás. A primeira fórmula
equivale à negação do velho como ser de desejo. A segunda, à negação do próprio
velho.
Não causa espanto a miopia dos mais jovens em
relação aos adultos. Reproduzem o que lhe dizem. Chega a ser piada. Ano
passado, quando a gente ainda podia andar de biarticulado, ouvi uma adolescente
confidenciar ao namorado que ia fazer as pazes com o pai. Ele estava velho,
podia morrer, e ela não queria carregar essa culpa – papai tinha, afinal, 40
anos.
Posso assegurar – em três décadas de atividades profissionais – que a maior parte dos idosos não cabe nesses dois modelos – o “power” e o “gracinha”. E mais: incomodam-se com esses discursos prontos, a ponto de fugir de entrevistas, por saberem de antemão que terão de desempenhar um papel. Se não o fizerem, a edição o fará por eles. Uma amiga me contou esses tempos que daria uma entrevista para a tevê – e tinha certeza de que apareceria no vídeo como a “velha solitária que se cerca de cachorros”. Tentei tranquilizá-la. Dias depois, me mandou mensagem: “Viu?...” Tinha se sentido reduzida a esse mínimo múltiplo comum. Penso que secretamente mandou o repórter à merda.
Não descarto que nada mais houve com ela do que um
estranhamento natural, pois assim acontece sempre que a gente vê nossa identidade
narrada na mídia. Mas não descarto que a máquina televisiva a tenha achatado, movida
pelo cacoete das reportagens desse naipe. No mais, o repórter, jovem, pode
imprimir no outro aquilo que consegue ver: que alguém “acima dos 47 anos” não
transa, não tem sombras, que devia correr no parque – mesmo com os meniscos em
pandarecos – e que bom seria que lhe servisse um chá com bolo de fubá,
ocupando-se de repetir a frase: “Antigamente, tudo isso aqui era mato...”
A propósito, faz pouco, ao agendar uma entrevista
com um nonagenário ilustre – despachado e calejado nos vícios da imprensa –,
antecipou-se. Toparia a conversa, desde que não lhe enchessem o saco com as
platitudes de sempre sobre alguém que chega aos 90 anos. E agora é que são
elas.
***
Penso que uma das vozes mais relevantes sobre a
velhice, no Brasil, seja a antropóloga paulista Mirian Goldenberg, professora
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É um quitute dos bons sua coluna no
jornal Folha de S.Paulo – na qual
costuma tratar do grupo que acompanha nos últimos carnavais, o dos “muito
velhos”. E aqueles que se deparam com a velhice – a própria, a de seus pais, ou
ambos – deveriam ler a coletânea Velho é
lindo!
, organizada por Mirian. Fácil achar nas livrarias: peça ao vendedor
o livro que tem na capa um velho e uma velha pelados. É pela capa que a obra
diz a que vem.
Goldenberg ficou bastante conhecida por estudar as amantes e as coroas, empreitada iniciada ainda na década de 1980. Tem milhagens e milhagens em gravação, nas quais ouve depoimentos de mulheres que ocupam – muitas sem dilemas – o papel de “a outra”. Escuta com profusão, do mesmo modo, as passadas dos 50 anos, essa cifra que mexe com o juízo dos jovens, pois não conseguem se enxergar nesta divisa. Tamanho know-how reservou à antropóloga uma rara especialidade – a “demografia amorosa”. Ou seja, ela opera uma cartografia em que sexo, gênero e idade se cruzam, método mais do que eficiente para pensar com mínima cientificidade questões como “homens compartilhados” por duas mulheres, lesbianidade tardia, solidão, “capital matrimonial”, novos arranjos familiares... Some-se que a pesquisa traz estatísticas bem convincentes sobre as possibilidades reais de encontrar parceiros e parcerias depois de tantas primaveras... Dá calafrios.
Parece não haver pior maneira de tratar do assunto do que infantilizar os idosos. Tratá-los como incapazes é a pior das receitas
Sobretudo, as investigações de Mirian Goldenberg
levam a pensar a velhice, assunto no qual seu rio de investigações acabou
desaguando. Difícil não lê-la sem entrar num processo de observação dos velhos
ao redor. Li, certa vez, que os idosos fazem cálculos depressivos a cada vez
que projetam 5 ou 10 anos de sua existência. Pensam se com 85, por exemplo,
terão juízo, se usarão fraldas, se terão sido abandonados pelos filhos. Não sei
se o fenômeno é assim tão mecânico. Se não se trata de mais um reducionismo. Os
velhos não são iguais, não sentem da mesma maneira, pois são extensões de si
mesmos. Ainda que possa haver uma psicologia recorrente àqueles que estavam por
aí quando os dinossauros ainda comiam frutas no topo das árvores e a vida era
em preto e branco, parece não haver pior maneira de tratar do assunto do que
infantilizar os idosos. Tratá-los como incapazes é a pior das receitas.
Suponho que a percepção do tempo seja o maior abismo
entre velhos e jovens. A ansiedade que os dias nos reservam diminui com o
passar dos anos – pois quase nada é novidade. Já os moços, pobres moços, esses
têm pressa, urgência, e não parece muito sábio criticá-los por isso. Os
relógios andam em ritmos diferentes. Em situações de exceção, piora: a pandemia
parece ter dado a louca nos ponteiros. Negacionistas ou não, todos se debatem
com a palavra “morte”, que nos bate continência no noticiário da manhã. Ninguém
sai impune dessa prova de fogo.
De minha parte, cá com meus velhos assustados com os boletins da Secretaria Municipal da Saúde, trato de falar de cuidados reais, seguidos do alerta de se vacinar contra informações tortas, veiculadas pelas tias e tios do WhatsApp. É um inferno. No mais, brincamos. Muita calma nesta hora. Vale aplicar a máxima da vetusta revista Seleções do Reader’s digest: “Rir é o melhor remédio”. Para os velhinhos que suspeitam que tem um corona na esquina, pronto para lhes dar uma sardela na bunda, repito o que disse o cineasta Woody Allen – “aqui ainda é o melhor lugar para comer um bife”. Melhor ficar mais um pouquinho. Força, gente. Coisa parecida dizia o showman Miéle – “que peninha, deixar os amigos, o uísque, a bossa”. Ou o filósofo e educador Rubem Alves, que disse algo como “fomos feitos para o que está aqui. Noutro lugar, não tem bolo de fubá e fumegantes xícaras de café para alegrar uma tarde fria”. Melhor ficar mais um pouquinho.
Jovens, POR FAVOR, não empurrem a fila.