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Leila Pugnaloni: desenhos no meio do tiroteio
| Foto: Arte: Felipe Lima

Soa manjado dizer que a artista plástica Leila Pugnaloni – carioca radicada em Curitiba – é uma das mulheres mais interessantes de sua geração. Muitos já o disseram – pela frente e pelas costas. Parece um argumento fácil para destacar o misto de talento, beleza e personalidade que formam sua aura – algo de uma estranheza solar em meio à terra cinzenta que ela escolheu para viver. O fato é que Leila continua sendo “a interessante”, adjetivo que brota de sua capacidade de surpreender sem fazer estrondo. É um tipo. Provoca pequenos e imprevisíveis abalos sísmicos – aqueles que não destroem nada em grande escala, mas nos fazem prestar atenção no chão, nas alturas e em como as pessoas e as coisas se movem. Seus crimes são delicados.

Quem trabalhou na imprensa cultural dos anos 1980 em diante falou de Leila em algum momento. Pelas exposições das quais participou, aqui, no Rio ou na caixa-prego. Ou por imposição. A turma com a qual ela andava gerava eletricidade – um povo que fazia a terra girar, a exemplo da poeta Alice Ruiz. “Eu achava o Paulo Leminski mais interessante do que os professores da Belas Artes”, diz, sobre a faculdade que decidiu abandonar perto de concluir.

A presença de Leila nessas rodas de contraventores da caretice compunha um quadro. Era das poucas mulheres a frequentar os bares da Boca Maldita, onde, não é preciso ter bola de cristal, causava. Oriunda da metrópole – além do Rio de Janeiro, tem pés fincados em Brasília, onde viveu antes de chegar aqui –, orbitava por aí beneficiada por uma espécie de imunidade. Parecia vacinada contra os males da província, na qual circulava sem tirar o sorriso do caminho e sem ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Era a artista que andava com poetas.

Leila era das poucas mulheres a frequentar os bares da Boca Maldita, onde, não é preciso ter bola de cristal, causava

Da parte que me cabe nesse latifúndio, tropecei em Leila Pugnaloni umas tantas vezes, como parte do ofício de jornalista da área cultural. Lembro em especial que, em um dia qualquer do fim da década de 1990, ela mandou avisar, sem cerimônia, que não iria mais expor. Categoria “saco cheio”. Se a memória não trai, ela se disse cansada da obrigação de a cada curta temporada de tempo ter de abrir uma exposição nova. As liturgias das rodas artísticas também não lhe provocavam muito apetite. “Achava um porre tanto ego. E aquele preconceito contra artista que vendia o que fazia...”, pontua. Quem quisesse ter com ela, que a procurasse no ateliê da Rua Reinaldino Schaffenberg de Quadros, no Juvevê, em companhia dos gatos, das plantas que cultiva no terraço e do companheiro Jaime Lechinski.

Foi seu “I want to be alone” – queria estar só como Greta Garbo. E não se tratava de balela. É verdade que Leila não cumpriu sua promessa a ferro e fogo. Voltou a expor, mas nada que a fizesse merecer todas as presenças da lista de chamada do circuito local. À época, como parte de sua liturgia de retirada de cena, transformou em canteiros de plantas algumas de suas monumentais estruturas de madeira. Eram peças em mata-juntas, que produzia num diálogo delicioso entre o modernismo, do qual é membro signatária, e as casinhas polonesas, com flores pintadas, paisagem que aprendeu a admirar com as cunhadas. Simples assim: obras que poderiam estar numa galeria viraram vasos para margaridas, rosas e quetais. Fez igual a Yoko Ono e outros criadores: migrou da galeria para o quintal.

No mais, com sorte, era possível vê-la pedalando na ciclovia, feliz da vida com suas escolhas. “Foi um processo pessoal. Decidi seguir uma rotina de pequenos prazeres, como ir à quitanda”, conta.

A despedida algo despretensiosa teve mais um capítulo quase invisível. Desenhista contumaz, obsessiva, onipresente ou que palavra servir para definir alguém entregue aos traços, decidiu escoar a produção. A papelada se avoluma até hoje à sua volta. Além das aparições a bordo da bicicleta, deu de aparecer vez ou outra por aí, com uma caixinha nas mãos, oferecendo desenhos a preço de banana. Suponho que teve quem levou um “Leila Pugnaloni” para casa e nem sabe disso. Seu feirão de saldos chegou uma tarde à redação da Gazeta do Povo e a vontade era chacoalhar os colegas, para que largassem a pauta e enfiassem a mão no bolso. “É a Leila, cara...”

Ela lembra do período sem superestimá-lo. Parece ter certa ojeriza em ocupar o centro da cena. Sem muita vontade de esticar, joga a juba frondosa para trás e traga um cigarro, não sem antes pedir licença. “Eu malho, pedalo, faço pilates e fumo...” O assunto toma outro rumo – a artista comenta, do nada, outro desmentido que fez, na grande arena da internet, a de que não iria mais pintar os cabelos. Assumiria as luzes brancas que o tempo mandou entregar e coisa e tal. Pois pintou. “O Jaime deu graças a Deus.” Não foi o único alívio doméstico dos últimos tempos.

Leila Pugnaloni entrou a seu modo nas brigas intestinas da política. A contenda ganhou pique em 2013, quando a blogueira cubana Yoani Sanchez levou corridões de alguns brasileiros mais exaltados. “Achei a esquerda autoritária com ela”, alfineta. Depois vieram as manifestações de 2013. Politizada, comprou brigas a granel. “Uma amiga um dia me disse: ‘Leila, vá à merda’.” Só piorou. Chateou-se à beça em meio à polarização. Também nesse tema não se demora. Informa o bastante para saber a dor de cabeça que dá circular no ambiente tóxico das redes sociais, tendo de desviar do tiroteio diário promovido pelos discursos do ódio.

Em vez de publicar mais um comentário a ser apropriado pelos trolls, ela deu de postar desenhos nas mídias sociais

Afastou-se para lamber as feridas, tal como milhares ao redor do planeta. O movimento de repulsa a esses espaços – não há mente que permaneça sadia, afinal, em meio a tamanha sucessão de golpes baixos – faz com que a internet seja cada vez menos atraente. Sites de jornais – e novas redes – esboçam movimentos contrários, criando nichos de excelência para abrigar quem quer discutir com civilidade mínima, em busca de algum proveito.

É nesse cenário que Leila, uma combatente dada a quitandas, se mostra mais Leila do que nunca. Em vez de publicar mais um comentário a ser apropriado pelos trolls – essas metralhadoras portáteis de ressentimento –, ela deu de postar desenhos. A prática tem mais ou menos uma década, mas ganha impacto à medida que o piso do país cede e o teto ameaça desabar. As imagens que divulga são os que produz em cascatas – expressões de sua intimidade. Sim, são biográficos, quando não biográficos das mulheres em geral. Parecem-se aos desenhos que um dia saiu a vender por aí, numa caixinha, como se fossem doces de uma bombonière.

Quem acompanha há de concordar. Encontrar uma dessas obras no meio de tantos discursos vociferantes equivale a se livrar de uma crise de falta de ar. Não raro, os trabalhos postados de Leila interagem com os discursos do ódio, sem que estejam acompanhados de palavras. Não querem dizer nada em especial – são sexies, românticos, ternos, mas acima de tudo despertam desejos.

Permitam-me uma comparação. Nos anos 1950, dizia-se que não havia quem não desse a vida em troca de, ainda que por um minuto, dançar com Fred Astaire. O próprio Gene Kelly – parece – cortaria um dedo dos pés para ser Astaire por uns instantes. Astaire dançava com tamanha naturalidade (como se tivesse encontrado uma porta secreta que o levava num átimo da caminhada ao movimento) que passava ao público a ilusão de que poderia fazer o mesmo. Bastava encontrar a tal fresta invisível. Muitos tentaram sapatear como ele – não conseguiram, é evidente, mas se entregar à imaginação valeu o show.

Pois os desenhos de Leila provocam efeito colateral semelhante. Ao vê-los, a gente suspeita tolinho que é capaz de num único traço esculpir um corpo, que se confunde a um cenário mínimo e culmina num coraçãozinho, ou algo assim como uma casinha com chaminé. Presumo que há quem tente copiá-la – e que mesmo sem conseguir, nem a pau, desfrute dos préstimos de ter tentado. Para isso existe a arte, afinal, depois que Marcel Duchamp virou um urinol de ponta-cabeça e fincou uma roda de bicicleta em cima de um banquinho de cozinha. Todos podem estagiar no mundo anticorporativo da estética.

Leila – que não morre de amores pela linguagem digital, mas a pratica todos os dias – provoca esse tesão nos internautas. A cada postagem, uma transa com o mundo. É bem bom vê-la circulando pelas redes, com sua caixinha de webdesenhos à mostra. Não causa espanto que alguns internautas nem saibam de quem se trata – e até quem a julgue uma amadora –, mas difícil acreditar que passem impune pela experiência. Tem de ser muito doido para não gostar de ar puro – ainda mais quando há tanta fumaça e fogo por aí.

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